Reflexões de Deise Benedito

Deise Benedito é Presidente da Fala Preta Organização de Mulheres Negras, Membro do CNPIR - Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, Membro do GT Defensoria Pública do Estado de São Paulo e Observatório da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e Fórum Nacional de Mulheres Negras.

sábado, dezembro 02, 2006

A chacina “nossa” de cada dia

70 % dos Jovens Assassinados são Negros
Deise Benedito*

Isso é inaceitável em todas as esferas dos governos deste País que vão assumir suas “cadeiras” no dia 1 de janeiro de 2007. A população negra e indígena, como indivíduos ou cidadãos, não pode ter como projeto de vida o extermínio, real ou simbólico!

O que pode transcender a indignação da população brasileira, da sociedade paulista? Saiu na Folha de São Paulo, e daí? Uma pergunta sem resposta que fica no ar. Quando a Folha traz os dados e os comentários de que mais de 70% dos jovens assassinados é negros, um silêncio ensurdecedor se faz ouvir.

A tranqüilidade com que se assiste à chacina “nossa” de cada dia, não causa nenhum sentimento de horror! A banalização da vida, por seguimentos da sociedade paulista, preocupada com a segurança pública, com o aumento da violência, com a insegurança em que se vive nos grandes centros urbanos... tudo isso aliado à ausência de ética, faz com que não seja dada qualquer atenção quando o número de jovens negros vítimas de homicídio inflacionam as estatísticas de mortalidade no Brasil.

Essa chacina, em sua maioria, é praticada por grupos de extermínio que se encarregam de executar a sentença ora já pronunciada por seguimentos da sociedade que – através de seu silêncio – legitimam a prática desses assassinatos com algo de “natural”. Afinal, no jargão popular, herança dos anos 1970: bandido bom é bandido morto!

Se, por um lado, o homicídio demonstra o limite máximo da exacerbação de conflitos nas relações interpessoais, no caso dos homicídios ocorridos por fatores externos que têm como alvo preferencial os jovens negros, isto não é considerado como uma “exacerbação”, nem tão pouco um “fenômeno”! O grande fenômeno na sociedade atual é um jovem negro completar 30 anos vivo!

Vivo! Uma vez que esse jovem faz parte do seguimento “que deve ser” eliminado, por não ser considerado necessário para o bem comum e para o desenvolvimento de uma sociedade que busca certo “padrão de perfeição e excelência”.

Ao entrarmos nas estações do metrô, em São Paulo, ao nos dirigirmos aos caixas para adquirir o bilhete, nos defrontamos com cartazes, como em uma “Exposição”, com até 10 fotos de jovens – em sua maioria, negros – que estão sendo “procurados” pela polícia: “Se você viu um destes rostos ligue para xxxxxx”.

Esses cartazes uma das formas encontradas pelo Estado para cumprir com o seu dever de proteger o “cidadão de bem”! Veja aí: você paga seus impostos e nós cumprimos com nosso papel!!! Para isso, são feitas abordagens policiais, no cotidiano das grandes cidades, onde o alvo são os jovens negros demonstrados num “espetáculo” de “captura de escravo fugido”, muitas vezes sendo algemados, enquanto a população assiste inerte (ou orgulhosa) o exercício desmedido da autoridade policial!

Em São Paulo, a colocação de câmeras fotográficas nos faróis nos grandes cruzamentos das ruas centrais da cidade, para além de viajar os corpos errantes – no clima de espionagem e suspeita de todos sobre todos – sob a égide da necessidade de proteção e mais segurança, marca o dia-a-dia de milhões de paulistanos, controlando a “massa” da população negra considerada supérflua; considerada neutra e indiferente; desprovida de valores civilizatórios; considerada desorganizada, sem nenhum valor agregado! Essa “massa” é composta por jovens negros que desafiam o cotidiano mantendo-se vivos, uma vez não têm ocupação, trabalho, residência fixa, nem tão pouco carteira assinada (estigma da “carta de alforria”, “passaporte do apartheid brasileiro”)!

Esse estado de perversão, que não herda os costumes e padrões da elite paulista quatrocentona, não causa qualquer perplexidade quando esses jovens são “as” vítimas do extermínio físico, social, cultural e moral.

É importante considerar que a palavra “genocídio” da população negra e jovem, significa o extermínio de coletividades étnicas (“geno”, raça; “cidium”, matança, assassinato). Sabemos que o genocídio consta da área do Direito como um crime de natureza internacional. Conforme a Convenção de 11 de dezembro de 1946: “Genocídio é qualquer ato ... mencionado e praticado com a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo nacional étnico racial ou religioso enquanto tal: morte dos membros do grupo, lesão grave à integridade física ou mental dos membros do grupo, sujeição intencional do grupo a condições de vida que hajam de acarretar a destruição física total ou parcial, entre outras”.

Já “extermínio” é mais ambíguo que o termo “genocídio”, pois não aparece nas Convenções de Direito Internacional, ou mesmo Nacional. Vemos que até os dicionários omitem ou simplificam: “extermínio”: ato de eliminar com morte, banir; segundo a enciclopédia Universal.

Concluo que o número elevado de assassinatos de jovens negros, em todo o país, faz parte de um projeto político de grupos que se arrogam o direito e o poder de selecionar os que devem viver e os que devem deixar de existi; o possível e o impossível. O extermínio define a sociedade entre os “bem feitores” (aqueles que executam as sentenças, uma vez que têm como agravante a cor da pele). Isso fica evidente quando não vemos tais índices de crescimento de homicídios por causas externas nas regiões “nobres” de São Paulo!

A abordagem policial em bairros como Jardins, Ipê, Ângela, Luso, Embu, Cidade Tiradentes, não segue a mesma metodologia que a aplicada nos bairros de Jardins, Morumbi, Itaim, Alfaville, uma vez que o público daí não é jovem nem tão pouco negro; ao contrário, é uma população que paga altos custos pela “segurança”, em seu condomínio fechado! Seguranças particulares, carros blindados a toda prova...

A “limpeza étnica” que está sendo “oferecida” ao país, por ações de grupos de extermínio, é administrada e mantida por um poder centralizador, imune à punição e motivado pela purificação da raça! E o que estão tentando é construir um novo momento histórico pela eliminação das “massas” supérfluas, para promover o “bem” da coletividade!

O sacrifício da “parte”, em favor do “todo”! O extermínio é sistemático, sem levar em conta o porquê das condições péssimas em que foram colocados os moradores das favelas, dos cortiços em áreas de risco; sem qualquer saneamento básico, espaço de convivência, luz, água de qualidade, transporte, saúde, educação. E ainda as prisões, as Febens utilizadas como modo de segregação, através da tentativa do apagamento da existência e, até mesmo, da personalidade com a sistemática prática de torturas, com a privação de sol, de ar, de alimentos, medicamentos... Tudo muito “bem” estruturado para que se tenham condições subumanas, com sessões de espancamento, com a absoluta dificuldade de acesso à justiça; demonstrando o quanto são desnecessários, horrendos e perigosos, seja em grupos ou sozinhos! Tudo estruturado para a eliminação do estorvo do caminho... Afinal, para o “status quo” não há possibilidade de desenvolvimento numa sociedade onde mais de 46% da população é composta por descentes do continente africano, somados a alguns povos indígenas que, depois de toda a dizimação, teimam em continuar a existindo. Como nos alerta Lasch, 1990:91: “Não há nada a ganhar mantendo-os vivos e nada a perder por suprimi-los.”.

Há necessidade de compreender o “fenômeno” do extermínio e do genocídio, das execuções sumárias, do assassinato em massa, da eliminação, da chacina, da desova, da execução extrajudicial que esconde todas as histórias de vida que mal se iniciaram; abatidas covardemente, impedidas do convívio, da segurança, da cidadania, com negação cotidiana ao direito de ser diferente e de ser tratado com igualdade! Esse é um processo que urge ser combatido! Isso é inaceitável em todas as esferas dos governos deste País que vão assumir suas “cadeiras” no dia 1 de janeiro de 2007. A população negra e indígena, como indivíduos ou cidadãos, não pode ter como projeto de vida o extermínio, real ou simbólico!

É hora de fortalecermos a campanha do “Laço Laranja”, pelo fim do extermínio da juventude negra e indígena! É preciso ampliá-la, com o envolvimento dos vários segmentos de defensores dos direitos humanos. Não vamos admitir, de forma alguma, que a vida dos nossos jovens negros e indígenas se torne “objeto” sem valor, prenúncio constante de morte precoce!

Fontes bibliográficas:
LASCH, C. O discurso sobre a morte em massa. As lições do Holocausto. In: O Mínimo. Eu, p. 90-115. São Paulo Brasiliense.
DURKHEIM, E. 1978. O Suicídio. São Paulo, Abril (Coleção “Pensadores”).
ARENDT, H . 1990. Origens do Totalitarismo. São Paulo. Companhia das Letras.

Deise Benedito é Presidente da Fala Preta Organização de Mulheres Negras,
Membro do CNPIR - Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial,
Membro do GT Defensoria Pública do Estado de São Paulo e
Observatório da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e
Fórum Nacional de Mulheres Negras.

Direitos Humanos e a População Negra

Deise Benedito*

No ano de 1500, mais precisamente no dia 22 de abril, na cidade onde foi declarada a “descoberta” da terra de Santa Cruz, hoje conhecida como Cabrália, teve início o maior e mais cruel de todos os episódios desumanizantes da história da humanidade: o extermínio dos povos indígenas em seu próprio território! A partir de 1549, somos obrigados a constatar a desterritorialização de milhares de representantes dos povos africanos que, na condição de “mercadoria”, são destituídos de sua nobreza, sem qualquer reconhecimento por sua história milenar. São esses mesmos africanos os responsáveis pelo desenvolvimento econômico e por parte da economia desenvolvida nesse país denominado Brasil, durante mais de 500 anos.

O tráfico transatlântico de Homens e Mulheres Africanos para o Brasil, toma dimensões gigantescas, seguidos de castigos e de toda forma de tratamento degradante, sob o beneplácito da “realeza” do Brasil Colônia!

A Inconfidência Mineira (1789), não previu o fim da Escravidão, apesar de pregar a “Libertas quae sera tamen” (“Liberdade ainda que tardia”).

A liberdade chegou após várias rebeliões, insurreições, sublevações, em todo território nacional contra a escravidão.

A revolução Francesa (1789) foi (e é) considerada o marco das declarações de direitos, demonstrando uma vocação universalizante, inspirada no lema da “liberdade, igualdade, fraternidade”.

Refletindo o individualismo liberal-burguês emergente dos séculos XVII e XVIII, no Brasil desse período diariamente aportam centenas de navios de bandeiras portuguesas, francesas, espanholas, tendo como principal “carga” homens e mulheres africanos destituídos de sua liberdade.

“Era um domingo de sol, quando a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, que aboliu a escravidão no Brasil. Quando a princesa chegou, a multidão, ansiosa, ficou em silêncio. Pois bastou ela completar a assinatura para ecoar uma explosão de “bravos” e aplausos. A cidade nunca tinha visto festa igual! Famílias inteiras choravam de alegria. Inimigos da véspera abraçavam-se. O dia 13 de maio de 1888 foi um marco na vida de milhares de homens e mulheres africanas e a população negra ainda escravizada.” (Machado de Assis)

Porém na segunda-feira, dia 14 de maio de 1888, inicia-se no Brasil a mais perversa trajetória de homens e mulheres, jovens e idosos negros, agora na condição de “ex-escravos”*.

Muitos dos ex-senhores de escravos encontravam-se ainda inconformados com a Lei que dava por extinta a escravidão, em todo o território nacional, e pressionaram vários parlamentares por sua revogação. Em várias províncias – que seriam rebatizadas de Estados (em 1889), a segurança foi reforçada pelo temor de que ocorressem saques e vinganças contra os senhores escravocratas.*

No âmbito jurídico, da transição da condição de “escravo” a homem e mulher livres, nada os acolheu: nenhuma proposta política; nem econômica; nem educacional; nem de saúde; nem de habitação. Nenhum compromisso foi firmado com essa população, então, livre.

Para mulheres negras jovens e idosas, nesse momento na condição de “ex-escravas” foi colocado um novo desafio: sua sobrevivência e a reconstrução de suas vidas, da de seus filhos, de seus maridos, sobrinhos e netos.*

Na condição de “livres”, muitas não mais poderiam continuar nas fazendas de seus senhores. As que já estavam nas ruas, trabalhando como ambulantes deveriam ampliar suas atividades. Passariam, também, a lavadeiras, engomadeiras, passadeiras, amas-de-leite, babás, faxineiras, cozinheiras, confeiteiras, arrumadeiras, empregadas domésticas, em troca de um prato de comida ou um local em condições (mesmo) humilhantes e insalubres, para garantir a sobrevivência, não raro em locais distantes de seus familiares.*

Através do devotamento, embalo e do afeto, na família para a qual prestavam serviços, muitas vezes, por não terem hora para o descanso, foram impedidas de acompanhar o crescimento e a educação de seus filhos, netos e sobrinhos (exatamente como ainda hoje ocorre na periferia das grandes cidades como São Paulo).

A trajetória de alguns homens e mulheres negras – já com idade avançada e acometidos por várias doenças causadas pelas condições desumanas de trabalho, além de péssimas acomodações e de pouca ou nenhuma alimentação adequada – foi na direção da mendicância, junto às portas das igrejas, na esperança de que a fé pública pudesse abrandar-lhes o sofrimento e o descaso por anos e anos de trabalho sem nenhuma indenização. Muitos passaram a portar deficiências físicas, pelos maus tratos infringidos na escravidão.*

Através da bem-estruturada política de imigração (início de 1870), com a concessão de terras para estrangeiros que foram tratados como trabalhadores assalariados, italianos, poloneses, alemães foram amparados por políticas de integração. A população negra, nesse momento, não foi amparada pelos movimentos socialistas e comunistas do século XIX e início do XX, do qual participavam imigrantes italianos, poloneses e alemães, que faziam parte do novo contingente de trabalhadores do Brasil. Tais movimentos tinham por objetivo garantir aos indivíduos condições materiais tidas como imprescindíveis para o pleno gozo dos direitos; considerando os direitos à segurança social, ao trabalho e à proteção contra o desemprego, ao repouso e ao lazer, incluindo férias remuneradas, a um padrão de vida que assegurasse saúde e bem-estar individual e da família, além da educação, da propriedade intelectual, bem como a liberdade de escolha profissional e de sindicalização.

Desprovida de tudo, a população negra passa a se organizar, para integrar a sociedade brasileira nos anos 1930. Nesse ano, em 16 de setembro, é fundada a Frente Negra Brasileira que chegou a ter mais de 36 mil filiados e que tinha como um dos seus objetivos a alfabetização de homens e mulheres, negros e negras, para e qualificação profissional para o mercado de trabalho, além do fim da abordagem truculenta sempre praticada por policiais. Na mesma linha estava a reivindicação pelo fim da perseguição racial contra a população negra. A Frente Negra Brasileira chegou a se constituir em um partido político, tendo suas atividades encerradas pelo, então, presidente Getúlio Vargas, em 1937.

Nos anos 1940, a II Guerra Mundial (incluindo a morte de mais de 10 milhões de Judeus nos campos de concentração nazista) choca o mundo. Alguns países, incentivados pela ONU (Organização das Nações Unidas), sendo, ao todo 148, redigem a Declaração Universal dos Direitos Humanos que representou um avanço na defesa dos direitos humanos e na defesa dos povos e das nações, após o holocausto do povo judeu.

A Declaração foi subscrita por todos os países membros da ONU, com a abstenção daqueles alinhados com a, então, União Soviética (8 abstenções dentre os 58 países membros). Nos seus 30 artigos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de caráter internacional, contém uma súmula dos direitos e deveres fundamentais dos homens e das mulheres, tanto do ponto de vista individual, quanto social, cultual e político.

O Brasil é um dos países signatários dessa Declaração, mas, no que diz respeito à questão da discriminação e do preconceito racial, nenhum efeito essa Declaração Universal surtiu no Brasil! Outros movimentos insurgiram-se contra a discriminação e o preconceito: a Imprensa Negra prestava grandes serviços à população, nos anos 1940, do mesmo modo que o TEN – Teatro Experimental do Negro – tendo à frente o baluarte Senador Abdias do Nascimento (1), que não se calava diante dos abusos praticados pelo racismo. Em 1950, foi realizado o 1º Congresso do Negro Brasileiro e criado o Conselho Nacional de Mulheres Negras, no Rio de Janeiro, que tinha como objetivo a valorização das mulheres negras inclusive no trabalho doméstico, já que eram, como nos dias de hoje, ultrajadas em seus direitos.
Durante décadas a população negra teve seus direitos constantemente aviltados, sofrendo no cotidiano a discriminação racial. Sobrevivia ao mito da democracia racial a denúncia de práticas racistas, inclusive, por parte da polícia; além das dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, de salários indignos, da ausência do direito à educação de qualidade, à moradia com saneamento básico, à segurança, à saúde de qualidade.

No ano de 1966, o Brasil ratifica a Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial. A Convenção afirma que Discriminação racial significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseados em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha por objeto ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, o gozo ou o exercício, em condições de igualdade, dos direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político, econômico, social e cultural ou em qualquer outro domínio da vida pública (2).

No âmbito internacional no que se refere à proteção dos Direitos Humanos, a Conferência de Teerã, de 1968, contemplou e reafirmou a indivisibilidade de interdependência dos Direitos Humanos. O pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais fortificou os artigos da declaração Universal de Direitos Humanos; porém, para a população negra, isso não passava de uma utopia, uma vez que homens e mulheres negras continuavam sendo discriminados no mercado de trabalho.

Durante as décadas de 1970 e 1980, o Movimento Negro Brasileiro e o Movimento de Mulheres Negras passam a denunciar as práticas discriminatórias no mercado de trabalho. A exigência de “boa aparência”, nos anúncios de empregos, impede que as mulheres negras ingressem no mercado de trabalho, enquanto os homens negros não são valorizados em suas tarefas.

A Convenção 111 da OIT - Organização Internacional do Trabalho define discriminação no emprego e na profissão como qualquer distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão (3).

Nos anos 1990, o Movimento Negro e o Movimento de Mulheres Negras passam a participar de conferências internacionais do sistema ONU, entre elas a Conferencia Mundial de Direitos Humanos, em Viena, no ano de 1993. Essa Conferência considerou que a promoção e proteção dos direitos humanos são questões prioritárias para a comunidade; uma oportunidade singular para uma análise abrangente do sistema internacional dos direitos humanos. Afirmou que todos os direitos humanos têm origem na dignidade e valor inerente à pessoa humana e que esta é o sujeito central dos direitos humanos e liberdades fundamentais, razão pela qual deve ser a principal beneficiária desses direitos e liberdades e participar ativamente de sua realização.

Porém os direitos humanos e as liberdades fundamentais no domínio político, econômico, social e cultural garantidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos são praticamente ignoradas para a população negra.

A seguir, destacamos alguns artigos que consideramos fundamentais, para reflexão:

· Direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal (artigo III)

Ser morador da periferia das grandes cidades como São Paulo; ser jovem e negro na faixa dos 14 a 25 anos é estar sujeito a perder a liberdade e a vida por abordagens da polícia e das seguranças privadas, da mesma forma como ocorreu nas décadas de 1970/1980 e anos 1990. Atualmente, em maio de 2006, na Zona Sul de São Paulo, vários jovens foram vítimas de execuções sumárias por parte de agentes do Estado.

· Proibição da escravidão e do tráfico de escravos (artigo IV)

Os trabalhadores negros em zonas rurais são expostos aos riscos do trabalho escravo, principalmente os jovens quando seduzidos por promessas de trabalho em outras capitais, principalmente em épocas do corte de cana, laranja, e em minas de carvão. Vivem em locais com condições insalubres, sem assistência médica adequada e com remuneração indigna em relação aos trabalhos para os quais são contratados.

Por outro lado, mulheres jovens e meninas negras estão expostas ao risco do tráfico sexual, através de propagandas promovidas por “agências de turismo”, aliadas a redes hoteleiras, principalmente nas regiões Norte e Nordeste do país. Tudo aliado ao tráfico de pessoas e de órgãos humanos.

· Proibição da tortura e do tratamento cruel (artigo V)

O sistema Penitenciário Brasileiro enfrenta, na atualidade, uma de suas maiores crises. Na grande maioria, os presos ficam instalados em condições subumanas, onde milhares de mandados de prisão são expedidos, mas não cumpridos. O desrespeito aos direitos humanos; o descontrole disciplinar; o não cumprimento das Regras Mínimas de Tratamentos de Presos (propugnadas pela ONU ou mesmo pela Constituição Federal). Homens negros e mulheres negras, em cumprimento de pena ou aguardando julgamento, são freqüentemente submetidos a tortura e tratamentos desumanos.

· Direito de ser reconhecido como pessoa (artigo VI)

Ao falar em reconhecimento como pessoa, vemos, nos meios de comunicação, a criação de estereótipos que marcam sempre, para a população negra, a condição de “marginalidade”, de “ignorância”, de “não-cidadão”; em papéis inferiores e desprezíveis, seja nas notícias, na dramaturgia televisiva, nos anúncios comerciais. Apesar de ser quase a metade da população brasileira e a que mais contribui para o país com impostos indiretos, a população negra continua sendo vista como não-consumidora.

· Igualdade perante a lei (artigo VII)

Realizada em 1987, uma pesquisa do Núcleo de Estudos de Violência, da USP, comprovou o tratamento desigual oferecido pelos aparelhos do poder judiciário aos réus negros. Esse tratamento desigual se traduz, entre outras, em penas mais severas para os delitos cometidos por negros.

· Proibição da prisão ou detenção arbitrária (artigo IX)

As abordagens arbitrárias da polícia, ocorridas na periferia da cidade de São Paulo, são acompanhadas por humilhações públicas aos jovens negros que trajam bonés, jaquetas, tênis, calças largas; que estão guiando motos ou carros. Freqüentemente esses jovens são submetidos a situações vexatórias nas ruas, em estabelecimentos comerciais ou bancários (com o bloqueio indevido de portas de segurança, por exemplo).

· Direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade seja provada (artigo XI)

A cultura racista, reproduzida na instituição policial, trata qualquer cidadão negro como suspeito “a priori”. No ambiente de trabalho, geralmente, homens ou mulheres são sempre suspeitos da autoria de qualquer ocorrência ilegal que haja ocorrido. Mulheres negras que são empregadas domésticas estão sempre submetidas a situações constrangedoras, seja no local de trabalho ou na rua, em lojas de shopping, por exemplo, onde são constantemente perseguidas por seguranças e pelos próprios funcionários instruídos a “observarem” o movimento no interior das lojas.

· Proteção da lei à vida privada, família, lar, correspondência (artigo XII)

As investidas da polícia em busca de drogas, produtos de roubo, ladrões ocorre sempre com violência nas favelas, nos bairros pobres, praticamente destruindo tudo que encontram pela frente: revirando guarda-roupas, vasculhando cômodos, intimidando os moradores e a vizinhança.

Por outro lado, por questão de “segurança”, as mulheres e homens em cumprimento de penas em estabelecimentos penitenciários ou “cadeiões”, Febens não têm direito à privacidade de suas correspondências, uma vez que são abertas por funcionários.

· Liberdade de locomoção e residência (artigo XIII)

A locomoção nas ruas que é parte intrínseca do “direito de ir e vir”, constitui-se como fator de risco para qualquer jovem negro, até mesmo estando na calçada de sua própria residência.

· Direito à propriedade (artigo XVII)

A abolição de 1988 foi realizada sem nenhuma indenização aos trabalhadores escravizados. O direito de propriedade dos descendentes de quilombos foi assegura na Constituição de 1988, mas um longo caminho ainda está sendo percorrido para que a propriedade das terras seja efetivada.

· Liberdade de pensamento, consciência e religião (artigo XVIII)

O fator essencial para a sobrevivência da população negra, durante o período colonial, foram as religiões de matrizes africanas que vieram com essa população e que modelaram a cultura brasileira. Mães e Pais-de-Santo são sistematicamente ofendidos em programas televisivos ou mesmo em seus “barracões” por adeptos de seitas “eletrônicas”, em total desrespeito à liberdade religiosa.

Constatamos que o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais (sem distinções de qualquer espécie) é uma norma fundamental do Direito Internacional. No ano de 2001, o Movimento Negro Brasileiro participou ativamente dos processos preparatórios da Conferência Mundial Contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas ocorrida em Durban, na África do Sul. Foi um marco para as relações raciais no Brasil e uma proposta efetiva para o fim das desigualdades sociais promovidas pelo racismo. A eliminação rápida e abrangente de todas as formas de racismo e discriminação racial, xenofobia e intolerância, associadas a esses comportamentos, deve ser uma tarefa prioritária para a comunidade internacional. Os Governos devem tomar medidas eficazes para prevení-las e combatê-las.

Após a Conferência de Durban, e até o momento, numerosas iniciativas tiveram como objetivo a promoção da igualdade racial, com objetivo de colocar um fim às desigualdades; dentre elas: a adoção de cotas para negros e indígenas nas Universidades Públicas; a criação de mecanismos para a promoção da igualdade racial conquistados; reivindicações pela inclusão de direitos como tema de agenda de desenvolvimento das populações quilombolas, das mulheres negras. Muitos dos compromissos contraídos nas Declarações e nos Planos de Ação da Conferência de Santiago (2000) e da Conferência de Durban permitiram avanço substantivo na luta contra o racismo, contra a xenofobia, contra a discriminação racial e todas as formas de intolerância, especialmente o reconhecimento dos direitos das vítimas da escravidão e do colonialismo.

Através da participação da sociedade civil na 1ª audiência de afrodescendentes, em 10 de março de 2002, na OEA, uma das reivindicações do Movimento Negro Brasileiro e do Movimento Negro Internacional foi a instituição da Relatoria Especial sobre os Direitos das Pessoas Afrodescendentes e contra o Racismo, no âmbito da Comissão de Direitos Humanos (OEA). Porém os desafios para a total garantia dos direitos humanos para a população negra é a inclusão efetiva de mulheres, jovens, crianças que ainda são vítimas do racismo. Ainda persiste a discriminação de gênero no acesso de trabalho, no credito imobiliário, na educação.

É urgente que se implementem os instrumentos internacionais ratificados e que esses sejam incorporados aos sistemas jurídicos e demais instituições nacionais para que, de fato, se faça valer os Direitos Humanos da População Negra no Brasil!


Referências:
Artigo - 14 de Maio 1988 Negras & Africanas.*
Artigo - Aliança Secular Afro Indígena*
Convenção Contra todas as formas de Discriminação, 1966.
Convenção 111 Organização Internacional do Trabalho.
Declaração Universal de Direitos Humanos.
Declaração e Plano de Ação da Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena.
Declaração e Plano de Ação da Conferência Mundial Contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas.


Deise Benedito é Presidente de Fala Preta Organização de Mulheres Negras; secretária do Fórum Nacional de Mulheres Negras; membro do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial.

(1) Abdias Nascimento foi Senador da República por duas legislaturas: 49ª e 50ª. de 1991 a 1999.
(2) Programa Nacional de Direitos Humanos. Brasil, gênero e raça: todos pela igualdade de oportunidades: teoria e prática, Brasília, Ministério do Trabalho, Assessoria Internacional, 1998, pág. 15
(3) op. cit., pág. 32

Os deserdados do destino

A construção da identidade negra criminosa no Brasil
Deise Benedito

Histórico

No Brasil, durante aproximadamente 260 anos, os povos indígenas foram submetidos à escravidão e trabalhos forçados que culminaram com o extermínio de mais de 5.000.000 de indígenas, dentre eles vários jovens guerreiros, com idades entre 10 e 20 anos, que foram covardemente mortos em nome do desenvolvimento.

Também durante mais de dois séculos, mais de 5 milhões de africanos foram colocados sob condições subumanas dentro de navios negreiros, também conhecidos como Tumbeiros, e forçadamente trazidos para o Brasil. Muitos destes africanos tinham idades entre 10 e 15 anos, e eram amplamente comercializados, categorizados como “bem semoventes”, e portanto passíveis de serem vendidos, trocados, leiloados, etc. Seus corpos eram o instrumento da disciplina por meio da dor e, ao mesmo tempo, a força para o trabalho nas lavouras, nos engenhos e na mineração.

Infância e escravidão

Nos fins do século XIX, os índices de mortalidade infantil no Brasil eram alarmantes, sendo objeto de estudos de vários higienistas durante o Segundo Império. Entre 1845 e 1847, um destes, Dr. Haddock Lobo, observou que 51,9% das crianças mortas tinham entre 1 e 10 anos de idade. Entretanto, a realidade das crianças brancas e escravas era muito diferente.

Enquanto as crianças brancas eram entregues às amas-de-leite desde o nascimento até os 06 anos de idade, a criança escrava sobrevivia com grande dificuldade, tendo que se adaptar ao ritmo do trabalho materno, já que as escravas negras voltavam para o trabalho apenas três dias após ter dado a luz. Buscando trazer um pouco mais de humanidade a essa atroz realidade, José Bonifácio elaborou um Projeto de Lei que previa que:

[A] “Escrava durante a prenhez e passado o 3o mez não será obrigada a serviços violentos e aturados; no 8o mez só será ocupada em casa, depois do parto terá um mez de convalescença, e passo este durante um ano não trabalhará longe da cria.” (Apud. Moncorvo Filho, 1926, p.80).

Infelizmente, o projeto nunca foi colocado em prática e, como a criança escrava tinha que se adaptar ao trabalho da mãe, elas eram comumente amarradas às suas costas, num hábito amplamente difundido na África, mas que, não raro, deixava as crianças com as pernas arqueadas ou defeituosas. A partir dos seis e até os doze anos de idade, as crianças escravas já desempenhavam algumas atividades simples, tais como limpar feijões e outros cereais destinados a alimentação dos escravos, cuidar de animais, e executar trabalhos domésticos. Dos 12 anos em diante elas já eram consideradas adultas, tanto para o trabalho e quanto para a sexualidade, e portanto eram encaminhadas para os campos. No entanto, se a mãe escrava era escolhida para ser ama-de-leite de uma criança branca, o destino de seus filhos era a Roda dos Expostos.

História da Roda

A Roda dos Expostos, ou Casa dos Enjeitados, ou simplesmente “a Roda”, era uma forma de atendimento à infância abandonada que teve início do antigo Egito e existiu em vários países do mundo nos séculos XVIII e XIX. A primeira Casa dos Expostos no Brasil foi fundada em 1726, em Salvador, pelo então vice-rei. Consistia em um cilindro que tinha um de seus lados abertos e girava em torno de um eixo vertical. As mães e pais colocavam o seu filho nesta abertura e giravam, e, do outro lado, uma instituição recolhia a criança, preservando assim o sigilo sobre a identidade dos pais.

Em 1738 foi fundada a Casa dos Expostos do Rio de Janeiro, por Romão Mattos Duarte, e em 1882 a Roda dos Expostos já existia em todas as províncias do território brasileiro. As crianças colocadas nas Casas das Rodas eram basicamente os filhos das escravas, as quais muitas vezes utilizavam as rodas como forma de livrá-los da escravidão e para quem colocar os filhos na Roda significava uma esperança.

A Roda dos Expostos recebia criança de qualquer cor, e preservava o anonimato dos país. A partir de 1775, as crianças escravas colocadas nas Rodas eram consideradas livres, ainda que nem sempre isso acontecesse. A Roda também era amplamente utilizada pelos proprietários de escravos que não queriam se responsabilizar pelos encargos da criação da prole, seja ela de seus próprios filhos ou filhos de suas escravas.

Com a Lei do Ventre Livre a quantidade de crianças colocadas nas “Rodas dos Expostos” cai, e a Casa de Misericórdia passa a atender os órfãos e os abandonados.

Entre os 13 e os 18 anos os “expostos”, como eram chamadas as crianças colocadas na roda, deveriam receber um salário das famílias que lhes permitisse trabalhar. Os que fossem devolvidos à Casa da Roda por mau comportamento seriam transferidos ou para o Arsenal de Guerra, ou para a Escola de Aprendizes de Marinheiros (fundada em 1873) ou para as Oficinas do Estado. As meninas tinham como destino o recolhimento das Órfãs, onde permaneciam até saírem, casadas. A Roda dos Expostos foi um dos maiores símbolos do pensamento assistencial brasileiro

Assistência à criança no Brasil

Devido ao imenso fluxo imigratório no Brasil, o período higienista, entre 1874 a 1922, suscitou a criação de varias sociedades científicas que trabalhavam no controle de doenças epidêmicas e na ordenação dos espaços públicos, e coletivos, inclusive escolas, internatos e prisões. Foi também nesse período que o Direito passou a atuar em conjunto com a Medicina e o Direito passaram a atuar juntos, buscando identificar, por meio de características físicas, os desvios de conduta. É criado um novo modelo de sociedade, no qual a “purificação das raças” é almejada.

Também neste período é criada a legislação sanitária estadual, e as amas-de-leite deixam de ser a profissão de muitas mulheres negras devido aos perigos de transmissão de doenças através do leite. A saúde da criança é pensada, e dissemina-se o uso da mamadeira e práticas mais cuidadosas no parto.

Com crescimento das cidades e a busca pelo controle social, instituições como cemitérios, fabricas, prisões, internatos, e hospícios passam ser necessárias, e em 1886 a Sociedade Promotora da Imigração é criada em São Paulo de modo a fazer frente, por meio do controle epidemiológico, ao surto de doenças que assolavam o país.

Surge, em 1873, a Sociedade Propagadora de Instrução Popular, posteriormente conhecida como Liceu de Artes e Ofícios e, pela iniciativa da família Souza Queiroz, foi fundado o Instituto Dona Ana Rosa, com intuito de oferecer proteção aos órfãos, ministrando instrução primaria e preparo profissional. Em 1895 foi fundado o Orfanato Cristovam Colombo, que inicialmente abrigava órfãos de imigrantes italianos vitimados pela febre amarela, e que mais tarde passa a atender crianças em geral.

Em 1938 foi criado o Serviço Social de Menores, que, em 1947 passou a ser subordinado à Secretaria da Justiça e Negócios do Interior, tornando-se então o órgão executivo da Política Estadual de Assistência ao Menor.

No ano de 1948, nasce uma nova ordem jurídica e assistencial no que tange os menores de idade, instituída após a “Semana de Estudos dos Problemas dos Menores”, patrocinada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e com o apoio do Juizado de Menores, Serviço Social e Departamento de Pesquisas de Economia e Humanismo. Durante 12 anos a fundação Pró-Menor, como foi chamada, teve por objetivo gerir uma política para o menor no Estado de São Paulo.

Em 1902 foi criado o Instituto Disciplinar, depois conhecido como Instituto de Modelo de Menores, e a Colônia Correcional. Em São Paulo, a Roda dos Expostos passou a se chamar Educandário Sampaio Viana, recebendo, em 1909, o nome de Casa da Criança.

No período entre 1924 e 1964, foi aprovado o primeiro Código de Menores (1927) ao mesmo tempo em que foi desativa a Casa dos Expostos e que foi regulamentada, pelo Poder Judiciário, o Juizado de Menores, órgão responsável por todas as instituições auxiliares aos menores, tornando o Estado o responsável legal pela tutela da criança órfã ou abandonada até os 18 anos de idade. No período da Republica, o Estado intensificou suas atenções ao problema do “menor abandonado”, uma vez que os menores infratores eram internados na Penitenciaria do Estado em São Paulo.

Em 1925, foi criado o Conselho de Assistência e Proteção ao Menor, que tinha como um de seus objetivos visitar e fiscalizar os estabelecimentos de menores, fazer propaganda contra os males sociais da marginalidade e promover meios de obtenção de recursos para proteger menores abandonados, infratores e portadores de deficiência mental.

Código de Menores

A promulgação do Código de Menores aconteceu em 1927, por meio do compromisso do primeiro Juiz de Menores da América Latina, Dr. José Candido de Albuquerque Mello. O Código de Menores de 1927, estabelece, em seu artigo 26, que:

“(....) Consideram-se abandonados os menores de 18 anos.

I- Que não tenha habitação certa nem meios de subsistência, por serem seus pais falecidos, desaparecidos ou desconhecidos ou por não terem tutor ou pessoa cuja guarda vivam.

II- Que vivem em companhia de pai, mãe, tutor ou pessoas que se entreguem a habitualmente a prática de atos contrários à moral e aos bons costumes.

III- Que se encontrem em estado habitual de vadiagem, mendicância ou libertinagem.

IV- Que freqüentem lugares de jogo ou de moralidade duvidosa ou andem na companhia de gente viciosa ou de má vida.

V- Que devido a crueldade, abuso de autoridade, negligencia ou exploração dos país, tutor ou encarregado de sua guarda sejam:

a) vitimas de maus tratos-físicos e habituais ou castigos imoderados:

b) privados habitualmente dos alimentos ou dos cuidados indispensáveis a saúde.

c) excitados habitualmente para gatunice, mendigagem ou libertinagem”.

Como se pode imaginar, as crianças que viviam sob as condições citadas nos artigos acima, eram, na sua grande maioria, negras, e pardas; elas eram habitualmente privadas de alimentos e de cuidados, muitos órfãos de pai, convivendo somente com a mãe, muitas vezes sem habitação, e não raro vítimas de maus tratos.

Uma vez que o trabalho infantil não era regulamentado, e que o código de 1927 proibia o trabalho de crianças até os 12 anos, e que se consideravam excluídas das leis penais crianças até os 14 anos de idade, as que estavam na faixa etária entre 14 e 18 anos eram sujeitas a internação em “estabelecimentos especiais” e, somente após os 18 anos, eram consideradas responsáveis pelos erros cometidos. Assim, as crianças que estavam fora do “mercado de trabalho” e fora do alcance do Estado, passam a ser foco de atenção dos médicos, juristas psicólogos, e pedagogos, tornando-se objeto de estudo.

Anos de Chumbo nas Grades de Ferro

Entre 1964 e 1990, dentro do espírito da Doutrina de Segurança Nacional, foi criada a Febem, que introduziu o militarismo nos internados. Também neste período são publicadas as primeiras leis que fazem distinção entre o menor infrator e o menor abandonado, e que, por seu turno, encaminhavam ex-menores para trabalharem preferencialmente no serviço militar ou em órgãos públicos. Esses menores eram, em sua maioria, pretos e pardos.

No período posterior à Revolução de 30, os discursos dos intelectuais, inclusive de Euclides da Cunha, partiam do princípio de que os pretos e os partos eram criminosos devido à “inferioridade Racial”. Nina Rodrigues, médico e antropólogo (1894) chegou a afirmar que os pretos e os mestiços tinham uma inclinação fisiológica para o crime, ainda que determinadas condições mesologicas também condicionavam a predisposição para o crime.

Por seu turno, Nelson Hungria e Artur Ramos afirmaram que os negros padecem de uma “crise de ajustamento”, não alcançando o nível de civilização dos brancos, ficando sempre num estagio de atraso cultural que favorecia o surgimento de comportamentos criminosos, substituindo a “determinação racial” pela cultural. Ambos atribuem a criminalidade dos não-brancos à sua cultura, substituindo a “patologia racial” pela patologia da sociedade e da cultura.

Vadiagem e Abandono

[ ] Tomemos a percepção que a vadiagem, durante a colonização, se revestia de múltiplos significativos; além de expressar a condição de indivíduos “vagabundos” e errantes sem moradia certa, também queria exprimir a recusa ao trabalho. As Ordenações Filipinas, código português em vigência no Brasil, definia como vadio alguém que vivia “sem amo”, sem senhor, sem ocupação, sem moradia certa, sem honestidade.”

“O Criminal do Império de 1830 foi mais incisivo em definir o vadio como ocioso; eram comportamentos considerados ameaçadores a estabilidade social, ligados ao submundo da delinqüência”

A partir destes pensamentos, arraigados ao preconceito e a discriminação, foram criadas varias instituições que segregariam crianças ociosas e acabariam por transformar a figura do “menor abandonado” em sinônimo de delinqüente potencial devido a sua ociosidade. A explicação para criação de instituições correcionais estava sempre ligada à necessidade de prevenção e defesa social, aliadas às noções de periculosidade, de modo que, uma vez nelas, as crianças seriam educadas para se transformarem em “elementos úteis”. Em outras palavras, é o próprio Estado quem constrói a identidade da criança e do jovem negro delinqüente no país, por serem eles a maioria dentre os menores definidos pelo Código de 1927.

A noção de abandono no conceito de “menor abandonado” requer uma clara e precisa definição, uma vez que pode tratar-se do abandono material ou familiar, mas também do abandono jurídico, que fato ocorre independente das existência ou não das pessoas. Até 1935 os menores “apreendidos” nas ruas, independentemente das causas, eram levados para abrigos de triagem do Serviço Social de Menores, onde eram separados unicamente pela faixa etária.

Assim os menores abandonados que não cometeram nenhum ato de delinqüência recebiam o mesmo tratamento dos considerados infratores. Por meio desta política de “portões abertos”, estes estabelecimentos voltados para a proteção dos abandonados era um abrigo de pousada diurna para todo tipo de jovens, inclusive os que aproveitavam a noite para suas “voltinhas atentatórias a segurança pública”.

Segurança e Obediência

Com o objetivo de corrigir essas distorções foi idealizado em 1954 o Recolhimento Provisório de Menores (RPM), um abrigo para menores infratores com idades entre 14 e 18 anos. Com o RPM, precursor das Unidades de Abrigo Provisório, planejou-se que o reformatório ficasse sob a responsabilidade do Poder Judiciário, que teria autonomia para agir objetivando a reeducação do menor infrator. Assim, a “política dos portões abertos” transformou-se em muros altos e pequenas masmorras, onde não havia nenhum corpo técnico voltado para as questões da juventude.

Prevalecia a política dos castigos e das surras com barras de ferro e correntes, choques elétricos e humilhações públicas como parte do processo de reeducação, numa reedição do sistema penitenciário. Adultos e jovens recebiam o mesmo tratamento, não raro, práticas desumanizantes, ao passo que o Brasil tornava-se signatário de tratados e convenções internacionais relativos à proteção da criança e do jovem, mesmo tendo uma legislação que mascarava uma pratica escravagista, arcaica e discriminatória como o uso da força.

Vigiar e Punir

Em 1964 é criada a primeira geração da Febem, e com ela o processo de criminalização do órfão/menor abandonado. O Professor Roberto da Silva, ex-interno da Febem, ex-presidiário e atualmente Professor da Faculdade de Educação da USP, em sua pesquisa realizada junto aos arquivos da Febem para elaboração de sua Tese “Os Filhos do Governo”, constatou que 60 % dos infratores foram internados com menos de 7 anos de idade.

Também quanto à distribuição de órfãos e abandonados segundo a cor, sabe-se que a maioria dos abandonados na Casa dos Expostos unidade Sampaio Viana eram crianças brancas, e que o numero de crianças negras e pardas cresceu após 1951. Na primeira geração de internos da FEBEM, a distribuição de brancos e pretos é praticamente uniforme. Entretanto, quando somados pretos e pardos, esses são a maioria : 64% dos meninos abandonados. Podemos também observar que o número de meninos internados na população negra é sempre maior, levando ao entendimento de que perambular pelas ruas, nos anos 60, era considerado infração. Em verdade, jogar uma pedra no telhado ou quebrar um cerca brincando na instituição era motivo suficiente para ser levado para o RPM.

A desestruturação familiar, as condições de desigualdade em que vive a população negra, a incidência do alcoolismo, drogadição, provocadas pelo desemprego e subemprego, na grande maioria, levam as mães solteiras, separadas ou casadas a levarem seus filhos para estas instituições na esperança de um tratamento melhor, por conta da propaganda que se fazia sobre esse tratamento e pelo direito a um auxilio que muitas mulheres teriam se lá colocassem seus filhos, sob a condição de visitá-los aos finais de semana. As histórias de vida destas mães eram completamente desconsideradas, principalmente seus sentimentos, emoções, percepções e reflexões sobre elas mesmas.

A maioria das crianças internada nos anos 60 não possuía nenhuma escolarização. Alguns poucos meninos possuíam três ou quatro anos de estudo, e, entretanto, saíam da instituição na mesma condição de semi-analfabetos em que entraram. O tempo médio de internação era de 12, 13, 17, 18 anos para os abandonados, enquanto os infratores iam e vinham. Pouquíssimos conseguiram ter escolarização, até porque muitos eram oriundos de outras entidades de internação e não havia um relatório que fornecesse informações quanto a escolaridade, tampouco sobre a disciplina e os relacionamentos familiares.

Os considerados indisciplinados eram transferidos para o “quadrilátero do terror” como era conhecido o quadrilátero do Tatuapé, onde ficava instalado o RPM. A rotina diária é despertar às 6 horas, almoçar das 12h30 às 13horas, das 18h30 às 19 horas jantar e às 21 horas se recolher. A profissionalização existente consistia em oferecer aos internos cursos de torneiro mecânico, marceneiro, eletricista, pintor, o que não era suficiente para estimula-los ao trabalho. Geralmente não havia uma interlocução com os monitores, a obediência era incondicional e a submissão, absoluta.

Sempre existiu na FEBEM um Serviço de Colocação Profissional,onde vários jovens pós a internação eram encaminhados, para trabalhar em empresas particulares também. O uso da força e do desprezo fazia parte do cotidiano; o Estado apenas se preocupava em suprir o abandono material, fornecendo abrigo, alimentação e vestuário, que se resumia a uma camiseta branca, um calção azul e um par de chinelos havaianas ou conga.

Amargo Regresso

Após os 18 anos, alguns foram encaminhados para pensionatos e permanecendo por 06 meses ate conseguirem uma colocação, alguns conseguiria trabalho no serviço público, procuradorias, fórum criminal e cível, começavam como Office boys depois prestavam concurso interno e eram efetivados, alguns foram para as forças armadas, Marinha de Santos, Florianópolis e Batalhão de Guardas do Exercito.

Aqueles que não conseguem colocação, não tiveram encaminhamento especifíco pós saída da Fbem, ficaram abandonados a própria sorte, não eram estudadas outras possibilidades de inserção destes jovens, um dos motivos eram que o jovem atingiu o Limite Maximo de idade estabelecido de sua permanência na entidade, as entidades que fazem os desligamentos não se preocupam com os desdobramentos. Como reconstruir a vida pós anos e anos de internação??? Como conviver em uma sociedade em que se viveu anos e anos infra-muros e fora dela, onde estão as suas referencias.

O tempo de permanência nas ruas, levam a escolher outras formas de sobreviver, tais como os pequenos roubos, furtos, trafico, alguns levam pouco tempo em liberdade, no mínimo 06 meses a 3 anos em um período até 02 anos eles cometem o seu primeiro delito agora com maior idade e vão direto para o presídio., suas condenações são entre 01 ano , 02, 5 anos e quatro meses variando de acordo com o delito.

A Identidade Criminosa Imposta pelo Estado

Ao se defrontarem com o imperativo de sobrevivência as possibilidades de delinqüência e ingressar na criminalidade torna-se mais possíveis isto ocorre logo após a desinternaçao, nenhum destes jovens tem a índole criminosa, mas suas identidades criminosas foram construídas dentro dos muros das instituições, e se acentuam com a primeira prisão , os chamados primários no Sistema Penitenciário tem penas inferiores a dois anos e um numero significativo, destes jovens recebem o beneficio conhecido como sursis, que suspende o cumprimento da pena pelo período de 02 anos, que significa que não podem ficar na rua além das 22 horas, nem tão pouco freqüentarem bar casas de jogos ou de prostituição, nem sair da cidade sem autorização do juiz, além de provar que estão exercendo alguma atividade licita, e que possuem residência fixa.

Mas para aqueles que ficaram a infância, adolescência, e a juventude institucionalizado, o que significa ficar 03 anos na prisão, qual a diferença entre a prisão e a febem????, uma vez que sua identidade sempre foi forjada no espaço institucional e se firma agora no espaço prisional.

O que leva um grande numero de jovens voltarem a prisão após o cumprimento da pena a cometerem novos delitos, outros tornam-se multi-reincidentes, por ter cometido três ou mais crimes.

O fenômeno da institucionalização não preparam para conviver em sociedade e não são absorvidos, por terem sidos estigmatizados por serem, negros pobres e oriundos da Febem. Muitos condenados a penas longas não conseguem um bom advogado muitos são condenados, passam anos e anos na prisão.

Considerados irrecuperáveis, por um outro lado incapazes de conviverem fora da institucionalização, tornam-se dependentes da vida institucional, e como Deserdados do Destino tem suas vidas definidas porões de segurança, a sociedade racista e da mídia que se preocupa em rotulá-los como elementos de alta periculosidade.

Citei aqui a primeira geração forjada sob a égide da segurança nacional, no período da ditadura militar, muitos destes jovens passaram pela Casa de Detenção de São Paulo, Penitenciaria do Estado e Manicômio Judiciário de Franco da Rocha.

O Eca e os Anos 90

Em 1973 é oficialmente criada a Febem Fundação do Bem Estar do Menor década de 70 e começo dos anos 80, o milagre econômico tão esperado não acontece. São Paulo cresce desordenadamente, furtos praticados por jovens meninos carentes de rua conhecidos como Trombadinhas crescem assustadoramente, tornando-se o passaporte de entrada para a instituição assaltos, latrocínios, homicídios, a infiltração do tráfico de drogas e o esquadrão da morte nas populações mais pobres.

Em de Junho de 1990 são criados os conselhos estaduais e municipais e conselho tutelares, é a primeira vez que o Estado passa a delegar poderes para a defesa dos direitos da criança através da sociedade civil, que até então era exclusivamente de sua competência, a questão da criança deixara de ser apenas filantropia de assistencialismo ou mesmo um caso de segurança social e passara ser tratado como uma “questão social”a criação de casas abrigos, e unidades de passagem sem a características de uma instituição.

Uma vez que a adolescência é considerada como momento crucial do desenvolvimento humano da constituição do sujeito, em seu meio social e da construção da sua personalidade.

As relações sociais e culturais e históricas econômicas da sociedade são decisivas na constituição da adolescência e conseqüentemente influenciam toda vida daquele ser humano.

Toda gama de direitos oferecida aos adolescentes vem também acompanhada de deveres, não retira do Estado da família e sociedade o papel da co responsabilidade, pra realização dos direitos fundamentais.

Todo e qualquer adolescente que vir a cometer um ato infracional deverá cumprir medida sócio educativa, a situação do adolescente em conflito com a lei não restringe a aplicação do principio constitucional na aplicação execução das medidas sócio educativas é imprescindível a observância do principio da legalidade prevista no artigo 5, inciso II da Constituição Federal.”Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”

Isto quer dizer que os agentes públicos não podem suprimir direitos que não tenham sido objetos de restrição imposta por lei ou decisão proferida por juiz competente

O estatuto dispõe de normas que responsabilizam o agente e a administração, que implique em qualquer cerceamento de direto, deve –se adotar e respeitar o devido processo legal para o adolescente acusado de praticar ato infracional previsto nos artigos 227, IV da Constituição Federal, 40 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e do 108,110,111 do Eca.

Dentro da lógica garantida pelo ECA a responsabilização do adolescente pelo ato infracional deve ser feita nos limites da Lei.

Rebeliões ofícios da Liberdade

A ocorrência de fugas foi uma pratica sempre que constante, desde a escravidão, nas instituições, as fugas são consideradas infrações disciplinares e merecedoras de castigos.

Os que se transformam em infratores e pré-criminosos são aqueles que de uma forma desordenada tentaram subverter a ordem da institucionalização, a fuga é a maior forma de agressividade e rebeldia.

As primeiras rebeliões no sistema Febem começam no ano de 1977 depois deste período só se intensificaram, um dos motivos é a própria superlotação e os maus tratos infligidos aos jovens , pois durante 21 anos estiveram sob a Lei de Segurança Nacional, a Febem desde sua fundação já teve mais de 26 Rebeliões seguidas de cenas de barbárie.

As dificuldades são imensas para um ex-interno da febem se adaptar a um mundo que não o do crime, uma vez embrutecido dentro da febem, após ter acompanhado inúmeras rebeliões.

O potencial delinquencial existe em todas as pessoas, mas para aqueles que passam de 4 a 6 meses na Febem ou mesmo o que foram criados toda a vida dentro destas instituições a identidade é institucional ela se manifesta no jovem assim que adentra a Febem apreende a desenvolver uma série de mecanismos para não colocar-se em choque;

A violência no cotidiano entre os pares constitui-se em um fator regulador das relações intra institucionais, o uso de armas por lideres dos grupos, é um fator preponderante a disposição de assumir os risco.

Uma vez que ele está na Febem ele tem que se comportar como um Febem...exige a capacidade delinqüir dentro da instituição sem ser punido ou descoberto, burlar todas as normas de segurança.

O processo da formação da identidade criminosa possui um objetivo, ao controle dos corpos restringe não só a liberdade de ir e vir,a vida institucional, e social, a forma de andar, de se vestir de gesticular, a cabeça baixa,as mãos para traz. o sim senhor e não senhor , herança da colonização, das relações feitores e escravos permanece no interior das instituições através da herança do militarismo da época da ditadura.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos consagrou inúmeros valores que passaram a ser adotados por diversos diplomas e sistemas e ordenamentos jurídicos.

No caso dos adolescentes sob medidas sócio educativas é necessário igualmente que todos esses valores sejam conhecidos e vivenciados durante o seu tempo de permanência nestas unidades.

Sempre seguida de uma rotina entediante, e ociosa tudo o que poderá acontecer ocorre apenas no campo das idéias, a estrutura física determinam o espaço o lugar, a cama a mesa e o assento nas horas da refeição do interno,seus muros são altos, sem janelas apenas pequenas aberturas, beliches de cimento, grades de ferro, mesas e bancos de cimento, a televisão encaixada na parede, onde sentados no cimento do chão se,mexer são vigiados por 03 ou quatro monitores de pé.

São nestas condições que estão abrigados milhares de meninos na unidades da febem para infrator em São Paulo que estão cumprindo penas Sócio Educativas previstas pelo ECA, em um país democrático as luzes do século XXI. No século dos direitos humanos, podemos assistir pela televisão as rebeliões ao vivo e o confinamento destes jovens como na antiguidade dentro das masmorras.

Esses jovens que passam 24 horas do dia trancados nas suas celas, cuja única visão e o pátio de cimento. quando saem em turnos para tomar sol sentam se em pequenos grupos, procurando uma sombra ao sol do meio dia sob a vigilância dos monitores.

Sempre apavorados com o perigo de uma possível rebelião, pois serão os primeiros a servir como reféns,os monitores, são os únicos que tem contato o tempo todo com os jovens infratores, os técnicos psicólogos, assistentes sociais permanecem no setor administrativo.

Os jovens vivem entre grades de ferro e paredes de cimento a presença da Natureza é a visão que vem do alto o céu azul os jovens internos,ficam o tempo todo no ócio arquitetando fugas e rebeliões, mesmo que essas pareçam impossíveis.

Direitos e Humanos

Os artigos 227 da Constituição Federal e 4. do ECA estabeleceram a co-responsabilidade da família, comunidade e sociedade em geral para assegurar por meio da promoção e defesa dos direitos das crianças e adolescente.

Para cada um destes atores sociais existem atribuições distintas, porém o trabalho de responsabilização e conscientização devem ser contínuo e recíproco.

A necessidade da desconstrução da imagem criminosa do adolescente negro e pobre nestas instituições.

Cabe ao Estado maior responsável pela Imposição desta Identidade Criminosa, a promoção e garantia dos direitos humanos destes jovens, que vivem em situação de vulnerabilidade, cabendo a ele promover políticas públicas que coloque o adolescente a família como prioridade nas suas políticas sociais.

As famílias negras e pobres merecem políticas publicas que visem estruturar-se para que possam evitar o abandono, principalmente dos jovens que se encontram em medida sócio educativa, é necessário que o Estado cumpra com suas responsabilidades, fiscalizando e acompanhando e reivindicando a melhoria nas condições do tratamento e prioridade para este publico específico inclusive no que se refere ao orçamento.

A responsabilidade do Estado frente aos tratados e convenções que o Brasil é signatário ainda implica em fortalecer as redes sociais de apoio para aqueles que se encontram em desvantagem social, conjugar esforços para garantir o comprometimento as sociedade, através da conscientização da população dos efeitos nefastos do racismo e do preconceito contra este jovens, uma vez que como pessoas em situação peculiar de desenvolvimento são sujeitos de direitos e responsabilidades.

As profundas desigualdades que se encontra a população negra brasileira produz em relação a adolescência negra um quadro perverso de preferência a responsabilização.

Assim todos os direitos garantidos pelo ECA ou seja direto a vida a saúde, a liberdade ao respeito e a dignidade e o direito a convivência familiar e comunitária a educação a cultura ao esporte e lazer a profissionalização e a proteção ao trabalho devem estar contemplados na elaboração de políticas publicas. A Integridade física e mental o Estado é o responsável, a Constituição Federal , ECA, Convenção Sobre os Direitos da Criança, Regras Mínimas Administração da Justiça Juvenil, Regras de Beijing, Declaração e Plano de Ação da Conferencia de Viena, Declaração e Plano de Ação de Durban.

Garantem a todo ser humano a condição de cidadão e humano no sentido mais amplo da palavra.

Fontes Bibliográficas
Mendigos Moleques e Vadios- Walter Fraga Filho
Ilusões da Liberdade- Marisa Correa
Filhos do Governo – Roberto da Silva
ECA- Estatuto da Criança e do Adolescente
Ordem e Castigo no Brasil
A Criança e a Febem

Deise Benedito é Coordenadora de Articulação Política e Direitos Humanos da ONG Fala Preta! Organização de Mulheres Negras; Conselheira da SEPPIR, do Movimento Nacional de Direitos Humanos e da Comissão de Direitos Humanos do Município de SP; e Secretaria Executiva do Fórum Nacional de Mulheres Negras.

in: http://www.novae.inf.br/pensadores/deserdados_destino.htm

Pró-Cotas - Aliança Secular

Afrodescendentes e Povos Indígenas
Deise Benedito*

Em 1500, em Porto Seguro, mais precisamente na região de Cabrália, após a invasão portuguesa, teve início o processo mais sangrento da história da humanidade, através do genocídio dos povos indígenas, os legítimos donos dessa “terra brazilis”. A escravização dos povos indígenas e o etnocídio promovido pelos europeus nas terras brasileiras reduziram a população original, devido aos embates sangrentos que foram dirigidos a esses povos que, donos da terra, puderam reagir e não se submeteram à escravidão, durante a exploração do pau-brasil que perdurou até 1530.

O processo de adoção de cotas, no Brasil, teve início com as “capitanias hereditárias”, entre 1530 e 1536 – dezoito ao todo – e com as sesmarias, que estabeleciam sub-reinados a partir da posse da terra.

Sabemos que a escravidão no Brasil e nas Américas promoveu, de forma brutal, o despovoamento do continente africano. Milhões de africanos foram desterritorializados, retirados de seu continente numa travessia atlântica de crueldade sem par. Homens, mulheres e crianças foram os protagonistas do espetáculo mais sangrento daquilo que chamam de “o desenvolvimento do novo continente”.

O sistema escravagista, perpetuando o uso abusivo da força, provocou inúmeras fugas de africanos escravizados para as matas, de onde foram resgatados e recepcionados pelos/as bravos/as guerreiros/as indígenas que, conforme me referi, não se subordinaram às investidas de desbravamento e à ocupação de suas terras. O povo da terra sabia muito bem o que estava acontecendo com os africanos fugidos, pois, haviam vivido seguidos e violentos embates que resultaram em verdadeira carnificina de diversas etnias indígenas.

Africanos, homens e mulheres escravizados, muitos dentre eles destituídos da nobreza que desfrutavam em terras do continente africano; guerreiros, agricultores, ferreiros, no processo da reconstrução de suas vidas além mar, constituíram um novo padrão civilizatório africano. Protegidos pelos espíritos das matas, dos companheiros de infortúnio, mesmo não dominando a mesma língua, estabeleceram um pacto em favor da sobrevivência, pela luta e resistência contra a opressão do colonizador cruel e desumano.

Instalam-se no Brasil novas fortificações, verdadeiros centros de resistência. Africanos, indígenas, brancos, todos explorados pelo sistema colonial português, unem-se para resistir às investidas de exploração e escravização da pessoa humana. Proliferam em várias capitanias os mocambos ou quilombos. Surge, nas Alagoas, o primeiro e mais complexo campo de resistência, o Quilombo dos Macacos, sede do Quilombo dos Palmares, estrategicamente posicionado. Ali foram estabelecidas novas regras de convivência, novas regras de conduta que podemos constatar como a primeira iniciativa de um movimento social no Brasil.

Alicerçados com o conhecimento da agricultura, da agropecuária, da metalurgia que traziam do continente africano; aplicando novas formas de escoamento da produção, Palmares torna-se o primeiro Estado Afro-Indígena das Américas. Os povos indígenas absorveram a nova forma de governo e foi estabelecido, em parceria, formas de organização contra as invasões.

Durante o período da escravidão no Brasil, não se tem notícias de conflitos entre negros e indígenas, como nos informa o historiador Flávio Gomes, em “Raça como Retórica”, organizado pela Sra. Ivonne Maggie, no capítulo referente à escravidão no Amazonas e Grão-Pará: muitos dos africanos durante a fuga morriam pela malária e outros conseguiam se salvar e passaram a viver em aldeias indígenas estabelecendo assim novas relações de cordialidade.

A oportunidade de os africanos se organizarem, no quilombo, buscando manter as mesmas formas de vida, como as que tinham nas sociedades no continente africano, foi possível graças à acolhida dos povos indígenas. Naquele novo lugar os africanos se dedicaram a reconstruir suas vidas, através da cultura, da fé e da resistência.

E qual a situação desses povos irmãos, hoje? Hoje, a população indígena está estimada em pouco mais de 300 mil pessoas. Dizimados, reagindo como podiam à invasão de suas terras; expulsos de seus territórios, degradados pela ausência de políticas públicas, pela falta da demarcação de território; sofrem a invisibilidade, a discriminação, o etnocídio, enquanto, sob a falácia da valorização cultural, relegam suas culturas a “folclore”.

A abolição da escravidão indígena, em 1690, e a decantada abolição da escravatura no Brasil, em 1888, nada garantiram a cada um desses seguimentos populacionais secularmente explorados, aos quais foi deixado absolutamente nada.

Mas o Brasil soube receber povos de além mar! Para o processo incentivado da imigração italiana, polonesa e alemã, foram asseguradas oportunidades, regalias, para integrarem a sociedade brasileira. Foram-lhes oferecidas condições dignas, concedidos lotes de terras para produção e sobrevivência; incentivos agrícolas e acesso à educação, com liberdade para criar suas escolas, falarem seus idiomas de origem e praticarem suas culturas.

Foi a adoção de “cotas” que beneficiou estes seguimentos que tiveram oportunidade de se desenvolver, num país que tinha nítidas intenção de estabelecer um processo de branqueamento. Esse processo de branqueamento não só promoveu a incorporação da mão-de-obra branca européia, deixando os africanos à própria sorte, como provocou a exclusão dos negros e dos povos indígenas dos bancos escolares.

Durante o período pós-abolição, no Brasil, à elite, que conseqüentemente é branca, sempre foi assegurado tratamento preferencial e favorável!

Nesse momento, estamos diante de um grande desafio, no país: a adoção de cotas para negros e indígenas e a adoção de políticas contra as desigualdades e pela reparação histórica para afrodescendentes e indígenas, conforme prevê a Declaração e o Plano de Ação de Durban.

As ações do movimento negro, no sentido de que sejam implementadas as cotas nas universidades públicas e as mobilizações nacionais devem inserir nossos irmãos indígenas.

O movimento negro brasileiro tem como premissa básica a igualdade e deve considerar o resgate da aliança secular afro-indígena. Aliança que vem sendo evidenciada, por exemplo, no evento da Eco 92 (RJ), da Marcha Zumbi-1995 (DF); em 2000, na Marcha Brasil Outros 500, que ocorreu em Cabrália, Porto Seguro (BA); aliança durante as conferências preparatórias para a Conferência de Durban; tal como na Conferência de Santiago; na Marcha pelas Reparações em Durban; no Tribunal Afro-Indígena pelas Reparações, promovido pelo Comitê Afro do Brasil, no Fórum Social de 2002, em Porto Alegre (RS); a Aliança Afro-Indígena, na Conferência Nacional de Políticas para Mulheres.

Vivemos um momento ímpar na sociedade brasileira. Todos os holofotes e canhões racistas estão voltados para nós, como no Quilombo dos Palmares. Assim como nossos ancestrais foram acolhidos e do mesmo modo como foram preservadas as populações quilombolas, é fundamental darmos continuidade à nossa aliança com os irmãos indígenas. Não podemos olhar apenas para nós. Somos diferentes, sim, mas padecemos do mesmo mal da discriminação e do preconceito. Sempre lutamos contra o estigma do preconceito, reivindicando igualdade de oportunidades para todos e para todas. Nossa luta tem caráter nacional e já ganhou reconhecimento internacional. Nesse momento, temos a oportunidade de mostrar à sociedade brasileira que juntos, negros e indígenas, somos mais fortes, porque assim sempre fomos, reagindo à opressão, desde o primeiro momento em que nos encontramos nessas terras do Brasil.

É hora de, mais uma vez, agregarmos as lideranças indígenas num processo de dignidade e resgate de cidadania, de direitos. A vida continua e a história desse país precisa ser contada por aqueles que, verdadeiramente, reconhecem esse solo como a sua terra, o seu fundamento, porque as terras férteis do Brasil foram regadas, de norte a sul, com sangue índio e sangue negro.

Deise Benedito
Presidente da Fala Preta Organização de Mulheres Negras
Fórum Nacional de Mulheres Negras

As mulheres negras no dia 14 de maio de 1888

Africanas, crioulas, negras: mulheres e jovens no dia 14 de maio de 1998
Por Deise Benedito*

"Era um domingo de sol, quando a princesa Isabel assinou a Lei Áurea que Aboliu a Escravidão no Brasil.
Quando a princesa chegou, a multidão, ansiosa, ficou em silêncio.
Pois bastou ela completar a assinatura, para ecoar uma explosão de bravos e aplausos.
A cidade nunca tinha visto festa igual! Famílias inteiras choravam de alegria. Inimigos da véspera abraçavam-se.
O dia 13 de maio de 1888 foi um marco na vida de milhares de homens e mulheres africanas e a população negra ainda escravizada."
Machado de Assis


Porém, na 2ª feira, dia 14 de Maio, iniciaria a mais perversa trajetória de homens e mulheres, jovens e idosos negros no Brasil, agora na condição de “ex-escravo”.

Muitos dos ex-senhores de escravos encontram-se ainda inconformados com a lei que dava por extinta a escravidão em todo o território nacional; pressionaram vários parlamentares para que a Lei fosse então revogada. Em vários estados a segurança foi reforçada, por temerem saques e vinganças contra os Senhores Escravocratas.

No âmbito jurídico – da transição da condição de escravo a homem e mulher livre – nada os acolheu: nenhuma política no campo da economia, educação, saúde, moradia; nenhum compromisso foi firmado com essa população, agora livre.

Para mulheres negras jovens e idosas – agora na condição de ex-escravas – está colocado mais um novo desafio: a sua sobrevivência e a reconstrução de suas vidas, de seus filhos, maridos, sobrinhos e netos. Agora livres, muitos não mais poderiam continuar nas fazendas de seus senhores. Aquelas que já estavam nas ruas trabalhando como ambulantes, agora deveriam ampliar suas atividades. Passariam a também ser lavadeiras, engomadeiras, passadeiras, amas de leite, babas, faxineiras, cozinheiras, confeiteiras, arrumadeiras, empregadas domesticas. Muitas, em troca de um prato de comida, um local em condições humilhantes e insalubres lhes garantiriam a sobrevivência, muitas vezes longe de seus familiares.

Porém, a imagem da mulher negra é vista como de uma ex-escrava cuja “dona de casa” lhe faz um favor quando que oferece trabalho, em troca de casa e comida. E isso é visto, aos olhos de muitos, como “proteção”, sendo que tal atitude permite que mandos e abusos sejam infringidos contra essas mulheres no interior de várias casas; tudo recebido com passividade.

Esta, quando jovem, é também vista como "bem de uso" no mundo dos brancos, cuja corpulência é transformada em objeto sexual. Quando possuidora de seios fartos, transforma-se em uma ama de leite e, através da amamentação, garantiria herdeiros saudáveis dos futuros presidentes, juízes, desembargadores, ministros, secretários de estado, governadores, prefeitos do Brasil.

Através do devotamento, embalo, afeto à família para a qual prestavam serviços, muitas vezes, por não terem hora para o descanso foram impedidas de acompanhar o crescimento e a educação de seus filhos, netos, sobrinhos.

A trajetória de algumas mulheres negras, já com idade avançada e acometidas de várias doenças causadas pelas condições desumanas de trabalho, pelas péssimas acomodações e pouca ou nenhuma alimentação adequada, levaram-nas a mendigar junto às portas das igrejas, na esperança de que a fé pública pudesse a elas abrandar o sofrimento e o descaso por anos e anos de trabalho sem nenhuma indenização.

Outro fator essencial para a sobrevivência pós-abolição foi a religiosidade que modelou a cultura brasileira. Muitas dessas mulheres passaram a assumir a liderança das comunidades sócio-religiosas afro-brasileiras. Essas mulheres eram detentoras do poder de lidar com a força divina dos Orixás e de seus ancestrais.

Ao mesmo tempo se tornavam mulheres temidas e respeitadas, através dos mistérios e poderes sustentados através de uma sabedoria inviolável e seguida de códigos e símbolos africanos.

Gerações de mulheres negras sobreviveram, através da religiosidade, ao rigor da escravidão. Agora, tinham de resistir ao preconceito religioso e às perseguições, como forma de resistência cultural e em defesa da continuidade de seus valores éticos e culturais.

Ele veio silenciosa nos porões do navio negreiro, presenciou todas as barbáries praticadas contra homens, mulheres e crianças durante a escravidão. Tornou-se o acalanto para as dores e o sofrimento, espalhou-se nas senzalas. Após a abolição da escravatura, surge um novo ritmo introduzido no Rio de Janeiro e que se alastraria por todo Brasil, ganhando novos adeptos e novos instrumentos. Esse ritmo adentra a casa da baiana Tia Ciata, de Tia Amélia (mãe de Donga), de Priciliana (Mãe de João da Baiana) e instala–se no seu quintal, nos morros e becos, para que músicos e batuqueiros pudessem tocar e cantar ao redor de uma enorme mesa repleta de garrafas e quitutes, caldos, feijoada; o que garantiria o sustento de muitas famílias nos finais de semana, pedindo passagem para a dignidade que se tornaria o patrimônio cultural da humanidade: o Samba.

Com o crescimento da industrialização, as mulheres negras passaram a ampliar os seus conhecimentos para adentrarem no mercado de trabalho.

O Brasil passava por várias mudanças no campo político e social. Agora era uma Republica e as primeiras mulheres feministas no Brasil passam a se manifestar no ano de 1910, fundando o Partido Republicano Feminino e tendo como fundadora Leonilda Daltro, no Rio de Janeiro.

Em 1922 é fundada a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, que desenvolve a campanha pelo voto feminino. O êxito nos seus feitos e a conquista do voto para mulheres se deu.

Porém o sucesso dessa conquista se dá pelo fato de que muitas mulheres negras, empregadas domésticas, babás, ficavam em casa, cuidando dos filhos e maridos dessas mulheres, para garantir essa conquista.

A política passa a ferver em todo o território nacional. É criada a Frente Negra Brasileira, em 16/09/1931, em São Paulo, nascendo da indignação de negros/as abnegados/as, tendo como um dos seus objetivos a integração de negros no mercado de trabalho, além do combate ao preconceito e à discriminação de que eram vítimas.

A Frente Negra Brasileira tinha seu Departamento Feminino que era responsável pela alfabetização de homens negros, de mulheres negras, de crianças e jovens. A FNB se constituiu em um movimento de caráter nacional, com repercussão internacional, sendo então extinta em 1938, pelo então Presidente Getúlio Vargas, 50 anos após a Abolição.

Em 1944, nasce o Teatro Experimental do Negro, com Abdias Nascimento à frente e a primeira atriz negra: Ruth de Souza. O Departamento Feminino do TEN teve como responsável a Sra. Maria Nascimento que fundou o Conselho Nacional das Mulheres Negras, composto por mulheres negras empregadas domésticas, em sua maioria. Transcrevemos abaixo alguns trechos do seu pronunciamento, na noite da fundação, em 18 de junho de 1950.

A Integração da Mulher de Cor na Vida Social

“A mulher negra sofre várias desvantagens sociais, por causa do seu despreparo cultural, por causa da pobreza, pela ausência adequada de educação profissional.”

O Conselho Nacional das Mulheres Negras terá um setor especializado em assuntos relativos à mulher e à infância. Esse Departamento Feminino tem como objetivo lutar pela integração da mulher negra na vida social, pelo seu levantamento educacional cultural e econômico.

“Desejamos fazer funcionar imediatamente um curso de artes culinárias, corte e costura, alfabetização, datilografia, admissão, ginásio e outros mais. Contaremos com professores voluntários. Será uma campanha voluntária para elevação educacional das mulheres negras”

Irão funcionar imediatamente os seguintes setores do Conselho Nacional de Mulheres Negras:
· Ballet Infantil
· Educação e Instrução
· Curso de Orientação de Mães
· Teatro Infantil
· Assistência Jurídica – Criminalista Dr. Celso Nascimento
· Orientação Sociológica ­– Prof. Guerreiro Ramos
· Corte e Costura – Nina de Barros
· Tricot – Sra Natalina Santos Correa
· Bordados- Catyy Silva
· Natação- Caramuru de Amaral
· Educação Física- Alberto Cordovil
· Datilografia- Milka Cruz

Partes do discurso proferido nos fins dos anos 40 já apontavam os caminhos a serem construído pelas mulheres negras no Brasil, ao longo das décadas de 1960, 1970, 1980, 1990, chegando ao século XXI.

Sabemos que a cultura de violência advinda do período da escravidão é ainda presente em todas as esferas da vida social brasileira. As mulheres negras sempre desenvolveram a luta contra a ideologia escravocrata, revivendo e recriando contos, lendas, mitos e recriando o patrimônio civilizatório africano na Diáspora Africana.

A discriminação racial e a violência são problemas sociais que atingem as mulheres negras e as impedem de ter uma vida digna e de serem respeitadas como cidadãs. Sua representação na sociedade não é vista por suas qualidades e valores, competência e sabedoria. Mesmo assim ela sobrevive numa luta insana para seu sustento e de sua família, para reviver, para manter a consciência negra.

Não lhes foram assegurados os direitos básicos e fundamentais para a pessoa humana: o acesso ao trabalho remunerado com dignidade, moradia, assistência de saúde adequada, respeito aos seus valores éticos, sociais, culturais e morais.

As mulheres negras passam a se organizar em associações de moradores, escolas de samba, movimento social e no movimento negro. Passam a exigir seus direitos. Apontam que a discriminação racial e a violência doméstica são fatores agravantes em suas vidas; participam da vida política do Brasil, em Seminários, Encontros, Palestras, Congressos nacionais e internacionais.

As Conferências do Sistema ONU, tais como ECO 92, Conferência de População do Cairo, Conferência da Mulher em Beijing, Conferência de Direitos Humanos de Viena, Conferência Mundial Contra o Racismo, em Durban, em 2001, contaram com a presença das mulheres negras que atuam em ONGs, no movimento social e em partidos políticos, mesmo tendo sua representação bastante reduzida ou inexistente no Congresso Nacional, nas Câmaras e Assembléia Legislativas, em todo o território nacional.

Inúmeras mulheres negras, presentes em diversas mobilizações, criam redes, fóruns e articulações nos espaços de governo, onde apresentam suas pautas de reivindicações.

As mulheres negras jovens, por sua vez, passam a se organizar e participar de forma ativa nas discussões do movimento feminista e movimento de mulheres negras, lutam contra a homofobia, o tráfico de mulheres e a exploração sexual. As bandeiras do movimento de mulheres negras são “combate a violência contra mulher e violência intrafamiliar”, “abuso e os maus tratos contra crianças e adolescentes”, “garantia de proteção à maternidade durante e pós-gravidez”, “combate ao trabalho infantil”. As lutas do movimento de mulheres negras são pela implementação de ações afirmativas e o monitoramento das políticas públicas, visando relações igualitárias entre homens e mulheres; a necessidade de capacitação dos gestores públicos, para a implementação das políticas públicas com o corte de gênero e raça; a titularidade das terras de remanescentes de quilombos; a adoção de cotas nas universidades; a necessidade da melhoria da qualidade do ensino; ampliação do número de vagas no ensino superior; o acesso à Justiça, à segurança e moradia digna; o reconhecimento dos Direitos Trabalhistas para as empregadas domésticas; o fim da violência e do racismo institucional nas “febens”, presídios, manicômios hospitais psiquiátricos.

Um dos principais desafios para as mulheres negras organizadas no século XXI é a luta conta o neoliberalismo, pelo fim das desigualdades, contra a intolerância religiosa e por uma afirmação positiva das mulheres negras, jovens e idosas nos meios de comunicação. A necessidade do reconhecimento dessas mulheres negras, jovens, idosas como agentes de transformação e símbolo de resistência tem sua origem na África. No momento em que suas ancestrais foram capturadas, aprisionadas nos depósitos de embarque para o novo mundo, a falta de dignidade foi instaurada e se perpetuou durante a travessia do Atlântico. A resistência dessas mulheres durou todo o período do escravismo, permanecendo como um legado de ouro até os dias de hoje.

A trajetória das mulheres negras pela dignidade da pessoa humana sempre foi uma constante na busca por reparações. É a garantia de que nada foi garantido às mulheres negras, jovens e idosas no dia 14 de maio de 1888.

Bibliografia:
Hunot, Silva Lara. Campos da Violência
Fraga Valter. Meninos, Moleques e Mendigos
Nascimento, Abdias. Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro.
Benedito, Deise. Deserdados do Destino.

*Deise Benedito é Coordenadora de Articulação Política e Direitos Humanos da Fala Preta Organização de Mulheres Negras; Secretária do Fórum Nacional de Mulheres Negras; Membro do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial - CNPIR

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