Reflexões de Deise Benedito

Deise Benedito é Presidente da Fala Preta Organização de Mulheres Negras, Membro do CNPIR - Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, Membro do GT Defensoria Pública do Estado de São Paulo e Observatório da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e Fórum Nacional de Mulheres Negras.

sábado, dezembro 02, 2006

Os deserdados do destino

A construção da identidade negra criminosa no Brasil
Deise Benedito

Histórico

No Brasil, durante aproximadamente 260 anos, os povos indígenas foram submetidos à escravidão e trabalhos forçados que culminaram com o extermínio de mais de 5.000.000 de indígenas, dentre eles vários jovens guerreiros, com idades entre 10 e 20 anos, que foram covardemente mortos em nome do desenvolvimento.

Também durante mais de dois séculos, mais de 5 milhões de africanos foram colocados sob condições subumanas dentro de navios negreiros, também conhecidos como Tumbeiros, e forçadamente trazidos para o Brasil. Muitos destes africanos tinham idades entre 10 e 15 anos, e eram amplamente comercializados, categorizados como “bem semoventes”, e portanto passíveis de serem vendidos, trocados, leiloados, etc. Seus corpos eram o instrumento da disciplina por meio da dor e, ao mesmo tempo, a força para o trabalho nas lavouras, nos engenhos e na mineração.

Infância e escravidão

Nos fins do século XIX, os índices de mortalidade infantil no Brasil eram alarmantes, sendo objeto de estudos de vários higienistas durante o Segundo Império. Entre 1845 e 1847, um destes, Dr. Haddock Lobo, observou que 51,9% das crianças mortas tinham entre 1 e 10 anos de idade. Entretanto, a realidade das crianças brancas e escravas era muito diferente.

Enquanto as crianças brancas eram entregues às amas-de-leite desde o nascimento até os 06 anos de idade, a criança escrava sobrevivia com grande dificuldade, tendo que se adaptar ao ritmo do trabalho materno, já que as escravas negras voltavam para o trabalho apenas três dias após ter dado a luz. Buscando trazer um pouco mais de humanidade a essa atroz realidade, José Bonifácio elaborou um Projeto de Lei que previa que:

[A] “Escrava durante a prenhez e passado o 3o mez não será obrigada a serviços violentos e aturados; no 8o mez só será ocupada em casa, depois do parto terá um mez de convalescença, e passo este durante um ano não trabalhará longe da cria.” (Apud. Moncorvo Filho, 1926, p.80).

Infelizmente, o projeto nunca foi colocado em prática e, como a criança escrava tinha que se adaptar ao trabalho da mãe, elas eram comumente amarradas às suas costas, num hábito amplamente difundido na África, mas que, não raro, deixava as crianças com as pernas arqueadas ou defeituosas. A partir dos seis e até os doze anos de idade, as crianças escravas já desempenhavam algumas atividades simples, tais como limpar feijões e outros cereais destinados a alimentação dos escravos, cuidar de animais, e executar trabalhos domésticos. Dos 12 anos em diante elas já eram consideradas adultas, tanto para o trabalho e quanto para a sexualidade, e portanto eram encaminhadas para os campos. No entanto, se a mãe escrava era escolhida para ser ama-de-leite de uma criança branca, o destino de seus filhos era a Roda dos Expostos.

História da Roda

A Roda dos Expostos, ou Casa dos Enjeitados, ou simplesmente “a Roda”, era uma forma de atendimento à infância abandonada que teve início do antigo Egito e existiu em vários países do mundo nos séculos XVIII e XIX. A primeira Casa dos Expostos no Brasil foi fundada em 1726, em Salvador, pelo então vice-rei. Consistia em um cilindro que tinha um de seus lados abertos e girava em torno de um eixo vertical. As mães e pais colocavam o seu filho nesta abertura e giravam, e, do outro lado, uma instituição recolhia a criança, preservando assim o sigilo sobre a identidade dos pais.

Em 1738 foi fundada a Casa dos Expostos do Rio de Janeiro, por Romão Mattos Duarte, e em 1882 a Roda dos Expostos já existia em todas as províncias do território brasileiro. As crianças colocadas nas Casas das Rodas eram basicamente os filhos das escravas, as quais muitas vezes utilizavam as rodas como forma de livrá-los da escravidão e para quem colocar os filhos na Roda significava uma esperança.

A Roda dos Expostos recebia criança de qualquer cor, e preservava o anonimato dos país. A partir de 1775, as crianças escravas colocadas nas Rodas eram consideradas livres, ainda que nem sempre isso acontecesse. A Roda também era amplamente utilizada pelos proprietários de escravos que não queriam se responsabilizar pelos encargos da criação da prole, seja ela de seus próprios filhos ou filhos de suas escravas.

Com a Lei do Ventre Livre a quantidade de crianças colocadas nas “Rodas dos Expostos” cai, e a Casa de Misericórdia passa a atender os órfãos e os abandonados.

Entre os 13 e os 18 anos os “expostos”, como eram chamadas as crianças colocadas na roda, deveriam receber um salário das famílias que lhes permitisse trabalhar. Os que fossem devolvidos à Casa da Roda por mau comportamento seriam transferidos ou para o Arsenal de Guerra, ou para a Escola de Aprendizes de Marinheiros (fundada em 1873) ou para as Oficinas do Estado. As meninas tinham como destino o recolhimento das Órfãs, onde permaneciam até saírem, casadas. A Roda dos Expostos foi um dos maiores símbolos do pensamento assistencial brasileiro

Assistência à criança no Brasil

Devido ao imenso fluxo imigratório no Brasil, o período higienista, entre 1874 a 1922, suscitou a criação de varias sociedades científicas que trabalhavam no controle de doenças epidêmicas e na ordenação dos espaços públicos, e coletivos, inclusive escolas, internatos e prisões. Foi também nesse período que o Direito passou a atuar em conjunto com a Medicina e o Direito passaram a atuar juntos, buscando identificar, por meio de características físicas, os desvios de conduta. É criado um novo modelo de sociedade, no qual a “purificação das raças” é almejada.

Também neste período é criada a legislação sanitária estadual, e as amas-de-leite deixam de ser a profissão de muitas mulheres negras devido aos perigos de transmissão de doenças através do leite. A saúde da criança é pensada, e dissemina-se o uso da mamadeira e práticas mais cuidadosas no parto.

Com crescimento das cidades e a busca pelo controle social, instituições como cemitérios, fabricas, prisões, internatos, e hospícios passam ser necessárias, e em 1886 a Sociedade Promotora da Imigração é criada em São Paulo de modo a fazer frente, por meio do controle epidemiológico, ao surto de doenças que assolavam o país.

Surge, em 1873, a Sociedade Propagadora de Instrução Popular, posteriormente conhecida como Liceu de Artes e Ofícios e, pela iniciativa da família Souza Queiroz, foi fundado o Instituto Dona Ana Rosa, com intuito de oferecer proteção aos órfãos, ministrando instrução primaria e preparo profissional. Em 1895 foi fundado o Orfanato Cristovam Colombo, que inicialmente abrigava órfãos de imigrantes italianos vitimados pela febre amarela, e que mais tarde passa a atender crianças em geral.

Em 1938 foi criado o Serviço Social de Menores, que, em 1947 passou a ser subordinado à Secretaria da Justiça e Negócios do Interior, tornando-se então o órgão executivo da Política Estadual de Assistência ao Menor.

No ano de 1948, nasce uma nova ordem jurídica e assistencial no que tange os menores de idade, instituída após a “Semana de Estudos dos Problemas dos Menores”, patrocinada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e com o apoio do Juizado de Menores, Serviço Social e Departamento de Pesquisas de Economia e Humanismo. Durante 12 anos a fundação Pró-Menor, como foi chamada, teve por objetivo gerir uma política para o menor no Estado de São Paulo.

Em 1902 foi criado o Instituto Disciplinar, depois conhecido como Instituto de Modelo de Menores, e a Colônia Correcional. Em São Paulo, a Roda dos Expostos passou a se chamar Educandário Sampaio Viana, recebendo, em 1909, o nome de Casa da Criança.

No período entre 1924 e 1964, foi aprovado o primeiro Código de Menores (1927) ao mesmo tempo em que foi desativa a Casa dos Expostos e que foi regulamentada, pelo Poder Judiciário, o Juizado de Menores, órgão responsável por todas as instituições auxiliares aos menores, tornando o Estado o responsável legal pela tutela da criança órfã ou abandonada até os 18 anos de idade. No período da Republica, o Estado intensificou suas atenções ao problema do “menor abandonado”, uma vez que os menores infratores eram internados na Penitenciaria do Estado em São Paulo.

Em 1925, foi criado o Conselho de Assistência e Proteção ao Menor, que tinha como um de seus objetivos visitar e fiscalizar os estabelecimentos de menores, fazer propaganda contra os males sociais da marginalidade e promover meios de obtenção de recursos para proteger menores abandonados, infratores e portadores de deficiência mental.

Código de Menores

A promulgação do Código de Menores aconteceu em 1927, por meio do compromisso do primeiro Juiz de Menores da América Latina, Dr. José Candido de Albuquerque Mello. O Código de Menores de 1927, estabelece, em seu artigo 26, que:

“(....) Consideram-se abandonados os menores de 18 anos.

I- Que não tenha habitação certa nem meios de subsistência, por serem seus pais falecidos, desaparecidos ou desconhecidos ou por não terem tutor ou pessoa cuja guarda vivam.

II- Que vivem em companhia de pai, mãe, tutor ou pessoas que se entreguem a habitualmente a prática de atos contrários à moral e aos bons costumes.

III- Que se encontrem em estado habitual de vadiagem, mendicância ou libertinagem.

IV- Que freqüentem lugares de jogo ou de moralidade duvidosa ou andem na companhia de gente viciosa ou de má vida.

V- Que devido a crueldade, abuso de autoridade, negligencia ou exploração dos país, tutor ou encarregado de sua guarda sejam:

a) vitimas de maus tratos-físicos e habituais ou castigos imoderados:

b) privados habitualmente dos alimentos ou dos cuidados indispensáveis a saúde.

c) excitados habitualmente para gatunice, mendigagem ou libertinagem”.

Como se pode imaginar, as crianças que viviam sob as condições citadas nos artigos acima, eram, na sua grande maioria, negras, e pardas; elas eram habitualmente privadas de alimentos e de cuidados, muitos órfãos de pai, convivendo somente com a mãe, muitas vezes sem habitação, e não raro vítimas de maus tratos.

Uma vez que o trabalho infantil não era regulamentado, e que o código de 1927 proibia o trabalho de crianças até os 12 anos, e que se consideravam excluídas das leis penais crianças até os 14 anos de idade, as que estavam na faixa etária entre 14 e 18 anos eram sujeitas a internação em “estabelecimentos especiais” e, somente após os 18 anos, eram consideradas responsáveis pelos erros cometidos. Assim, as crianças que estavam fora do “mercado de trabalho” e fora do alcance do Estado, passam a ser foco de atenção dos médicos, juristas psicólogos, e pedagogos, tornando-se objeto de estudo.

Anos de Chumbo nas Grades de Ferro

Entre 1964 e 1990, dentro do espírito da Doutrina de Segurança Nacional, foi criada a Febem, que introduziu o militarismo nos internados. Também neste período são publicadas as primeiras leis que fazem distinção entre o menor infrator e o menor abandonado, e que, por seu turno, encaminhavam ex-menores para trabalharem preferencialmente no serviço militar ou em órgãos públicos. Esses menores eram, em sua maioria, pretos e pardos.

No período posterior à Revolução de 30, os discursos dos intelectuais, inclusive de Euclides da Cunha, partiam do princípio de que os pretos e os partos eram criminosos devido à “inferioridade Racial”. Nina Rodrigues, médico e antropólogo (1894) chegou a afirmar que os pretos e os mestiços tinham uma inclinação fisiológica para o crime, ainda que determinadas condições mesologicas também condicionavam a predisposição para o crime.

Por seu turno, Nelson Hungria e Artur Ramos afirmaram que os negros padecem de uma “crise de ajustamento”, não alcançando o nível de civilização dos brancos, ficando sempre num estagio de atraso cultural que favorecia o surgimento de comportamentos criminosos, substituindo a “determinação racial” pela cultural. Ambos atribuem a criminalidade dos não-brancos à sua cultura, substituindo a “patologia racial” pela patologia da sociedade e da cultura.

Vadiagem e Abandono

[ ] Tomemos a percepção que a vadiagem, durante a colonização, se revestia de múltiplos significativos; além de expressar a condição de indivíduos “vagabundos” e errantes sem moradia certa, também queria exprimir a recusa ao trabalho. As Ordenações Filipinas, código português em vigência no Brasil, definia como vadio alguém que vivia “sem amo”, sem senhor, sem ocupação, sem moradia certa, sem honestidade.”

“O Criminal do Império de 1830 foi mais incisivo em definir o vadio como ocioso; eram comportamentos considerados ameaçadores a estabilidade social, ligados ao submundo da delinqüência”

A partir destes pensamentos, arraigados ao preconceito e a discriminação, foram criadas varias instituições que segregariam crianças ociosas e acabariam por transformar a figura do “menor abandonado” em sinônimo de delinqüente potencial devido a sua ociosidade. A explicação para criação de instituições correcionais estava sempre ligada à necessidade de prevenção e defesa social, aliadas às noções de periculosidade, de modo que, uma vez nelas, as crianças seriam educadas para se transformarem em “elementos úteis”. Em outras palavras, é o próprio Estado quem constrói a identidade da criança e do jovem negro delinqüente no país, por serem eles a maioria dentre os menores definidos pelo Código de 1927.

A noção de abandono no conceito de “menor abandonado” requer uma clara e precisa definição, uma vez que pode tratar-se do abandono material ou familiar, mas também do abandono jurídico, que fato ocorre independente das existência ou não das pessoas. Até 1935 os menores “apreendidos” nas ruas, independentemente das causas, eram levados para abrigos de triagem do Serviço Social de Menores, onde eram separados unicamente pela faixa etária.

Assim os menores abandonados que não cometeram nenhum ato de delinqüência recebiam o mesmo tratamento dos considerados infratores. Por meio desta política de “portões abertos”, estes estabelecimentos voltados para a proteção dos abandonados era um abrigo de pousada diurna para todo tipo de jovens, inclusive os que aproveitavam a noite para suas “voltinhas atentatórias a segurança pública”.

Segurança e Obediência

Com o objetivo de corrigir essas distorções foi idealizado em 1954 o Recolhimento Provisório de Menores (RPM), um abrigo para menores infratores com idades entre 14 e 18 anos. Com o RPM, precursor das Unidades de Abrigo Provisório, planejou-se que o reformatório ficasse sob a responsabilidade do Poder Judiciário, que teria autonomia para agir objetivando a reeducação do menor infrator. Assim, a “política dos portões abertos” transformou-se em muros altos e pequenas masmorras, onde não havia nenhum corpo técnico voltado para as questões da juventude.

Prevalecia a política dos castigos e das surras com barras de ferro e correntes, choques elétricos e humilhações públicas como parte do processo de reeducação, numa reedição do sistema penitenciário. Adultos e jovens recebiam o mesmo tratamento, não raro, práticas desumanizantes, ao passo que o Brasil tornava-se signatário de tratados e convenções internacionais relativos à proteção da criança e do jovem, mesmo tendo uma legislação que mascarava uma pratica escravagista, arcaica e discriminatória como o uso da força.

Vigiar e Punir

Em 1964 é criada a primeira geração da Febem, e com ela o processo de criminalização do órfão/menor abandonado. O Professor Roberto da Silva, ex-interno da Febem, ex-presidiário e atualmente Professor da Faculdade de Educação da USP, em sua pesquisa realizada junto aos arquivos da Febem para elaboração de sua Tese “Os Filhos do Governo”, constatou que 60 % dos infratores foram internados com menos de 7 anos de idade.

Também quanto à distribuição de órfãos e abandonados segundo a cor, sabe-se que a maioria dos abandonados na Casa dos Expostos unidade Sampaio Viana eram crianças brancas, e que o numero de crianças negras e pardas cresceu após 1951. Na primeira geração de internos da FEBEM, a distribuição de brancos e pretos é praticamente uniforme. Entretanto, quando somados pretos e pardos, esses são a maioria : 64% dos meninos abandonados. Podemos também observar que o número de meninos internados na população negra é sempre maior, levando ao entendimento de que perambular pelas ruas, nos anos 60, era considerado infração. Em verdade, jogar uma pedra no telhado ou quebrar um cerca brincando na instituição era motivo suficiente para ser levado para o RPM.

A desestruturação familiar, as condições de desigualdade em que vive a população negra, a incidência do alcoolismo, drogadição, provocadas pelo desemprego e subemprego, na grande maioria, levam as mães solteiras, separadas ou casadas a levarem seus filhos para estas instituições na esperança de um tratamento melhor, por conta da propaganda que se fazia sobre esse tratamento e pelo direito a um auxilio que muitas mulheres teriam se lá colocassem seus filhos, sob a condição de visitá-los aos finais de semana. As histórias de vida destas mães eram completamente desconsideradas, principalmente seus sentimentos, emoções, percepções e reflexões sobre elas mesmas.

A maioria das crianças internada nos anos 60 não possuía nenhuma escolarização. Alguns poucos meninos possuíam três ou quatro anos de estudo, e, entretanto, saíam da instituição na mesma condição de semi-analfabetos em que entraram. O tempo médio de internação era de 12, 13, 17, 18 anos para os abandonados, enquanto os infratores iam e vinham. Pouquíssimos conseguiram ter escolarização, até porque muitos eram oriundos de outras entidades de internação e não havia um relatório que fornecesse informações quanto a escolaridade, tampouco sobre a disciplina e os relacionamentos familiares.

Os considerados indisciplinados eram transferidos para o “quadrilátero do terror” como era conhecido o quadrilátero do Tatuapé, onde ficava instalado o RPM. A rotina diária é despertar às 6 horas, almoçar das 12h30 às 13horas, das 18h30 às 19 horas jantar e às 21 horas se recolher. A profissionalização existente consistia em oferecer aos internos cursos de torneiro mecânico, marceneiro, eletricista, pintor, o que não era suficiente para estimula-los ao trabalho. Geralmente não havia uma interlocução com os monitores, a obediência era incondicional e a submissão, absoluta.

Sempre existiu na FEBEM um Serviço de Colocação Profissional,onde vários jovens pós a internação eram encaminhados, para trabalhar em empresas particulares também. O uso da força e do desprezo fazia parte do cotidiano; o Estado apenas se preocupava em suprir o abandono material, fornecendo abrigo, alimentação e vestuário, que se resumia a uma camiseta branca, um calção azul e um par de chinelos havaianas ou conga.

Amargo Regresso

Após os 18 anos, alguns foram encaminhados para pensionatos e permanecendo por 06 meses ate conseguirem uma colocação, alguns conseguiria trabalho no serviço público, procuradorias, fórum criminal e cível, começavam como Office boys depois prestavam concurso interno e eram efetivados, alguns foram para as forças armadas, Marinha de Santos, Florianópolis e Batalhão de Guardas do Exercito.

Aqueles que não conseguem colocação, não tiveram encaminhamento especifíco pós saída da Fbem, ficaram abandonados a própria sorte, não eram estudadas outras possibilidades de inserção destes jovens, um dos motivos eram que o jovem atingiu o Limite Maximo de idade estabelecido de sua permanência na entidade, as entidades que fazem os desligamentos não se preocupam com os desdobramentos. Como reconstruir a vida pós anos e anos de internação??? Como conviver em uma sociedade em que se viveu anos e anos infra-muros e fora dela, onde estão as suas referencias.

O tempo de permanência nas ruas, levam a escolher outras formas de sobreviver, tais como os pequenos roubos, furtos, trafico, alguns levam pouco tempo em liberdade, no mínimo 06 meses a 3 anos em um período até 02 anos eles cometem o seu primeiro delito agora com maior idade e vão direto para o presídio., suas condenações são entre 01 ano , 02, 5 anos e quatro meses variando de acordo com o delito.

A Identidade Criminosa Imposta pelo Estado

Ao se defrontarem com o imperativo de sobrevivência as possibilidades de delinqüência e ingressar na criminalidade torna-se mais possíveis isto ocorre logo após a desinternaçao, nenhum destes jovens tem a índole criminosa, mas suas identidades criminosas foram construídas dentro dos muros das instituições, e se acentuam com a primeira prisão , os chamados primários no Sistema Penitenciário tem penas inferiores a dois anos e um numero significativo, destes jovens recebem o beneficio conhecido como sursis, que suspende o cumprimento da pena pelo período de 02 anos, que significa que não podem ficar na rua além das 22 horas, nem tão pouco freqüentarem bar casas de jogos ou de prostituição, nem sair da cidade sem autorização do juiz, além de provar que estão exercendo alguma atividade licita, e que possuem residência fixa.

Mas para aqueles que ficaram a infância, adolescência, e a juventude institucionalizado, o que significa ficar 03 anos na prisão, qual a diferença entre a prisão e a febem????, uma vez que sua identidade sempre foi forjada no espaço institucional e se firma agora no espaço prisional.

O que leva um grande numero de jovens voltarem a prisão após o cumprimento da pena a cometerem novos delitos, outros tornam-se multi-reincidentes, por ter cometido três ou mais crimes.

O fenômeno da institucionalização não preparam para conviver em sociedade e não são absorvidos, por terem sidos estigmatizados por serem, negros pobres e oriundos da Febem. Muitos condenados a penas longas não conseguem um bom advogado muitos são condenados, passam anos e anos na prisão.

Considerados irrecuperáveis, por um outro lado incapazes de conviverem fora da institucionalização, tornam-se dependentes da vida institucional, e como Deserdados do Destino tem suas vidas definidas porões de segurança, a sociedade racista e da mídia que se preocupa em rotulá-los como elementos de alta periculosidade.

Citei aqui a primeira geração forjada sob a égide da segurança nacional, no período da ditadura militar, muitos destes jovens passaram pela Casa de Detenção de São Paulo, Penitenciaria do Estado e Manicômio Judiciário de Franco da Rocha.

O Eca e os Anos 90

Em 1973 é oficialmente criada a Febem Fundação do Bem Estar do Menor década de 70 e começo dos anos 80, o milagre econômico tão esperado não acontece. São Paulo cresce desordenadamente, furtos praticados por jovens meninos carentes de rua conhecidos como Trombadinhas crescem assustadoramente, tornando-se o passaporte de entrada para a instituição assaltos, latrocínios, homicídios, a infiltração do tráfico de drogas e o esquadrão da morte nas populações mais pobres.

Em de Junho de 1990 são criados os conselhos estaduais e municipais e conselho tutelares, é a primeira vez que o Estado passa a delegar poderes para a defesa dos direitos da criança através da sociedade civil, que até então era exclusivamente de sua competência, a questão da criança deixara de ser apenas filantropia de assistencialismo ou mesmo um caso de segurança social e passara ser tratado como uma “questão social”a criação de casas abrigos, e unidades de passagem sem a características de uma instituição.

Uma vez que a adolescência é considerada como momento crucial do desenvolvimento humano da constituição do sujeito, em seu meio social e da construção da sua personalidade.

As relações sociais e culturais e históricas econômicas da sociedade são decisivas na constituição da adolescência e conseqüentemente influenciam toda vida daquele ser humano.

Toda gama de direitos oferecida aos adolescentes vem também acompanhada de deveres, não retira do Estado da família e sociedade o papel da co responsabilidade, pra realização dos direitos fundamentais.

Todo e qualquer adolescente que vir a cometer um ato infracional deverá cumprir medida sócio educativa, a situação do adolescente em conflito com a lei não restringe a aplicação do principio constitucional na aplicação execução das medidas sócio educativas é imprescindível a observância do principio da legalidade prevista no artigo 5, inciso II da Constituição Federal.”Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”

Isto quer dizer que os agentes públicos não podem suprimir direitos que não tenham sido objetos de restrição imposta por lei ou decisão proferida por juiz competente

O estatuto dispõe de normas que responsabilizam o agente e a administração, que implique em qualquer cerceamento de direto, deve –se adotar e respeitar o devido processo legal para o adolescente acusado de praticar ato infracional previsto nos artigos 227, IV da Constituição Federal, 40 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e do 108,110,111 do Eca.

Dentro da lógica garantida pelo ECA a responsabilização do adolescente pelo ato infracional deve ser feita nos limites da Lei.

Rebeliões ofícios da Liberdade

A ocorrência de fugas foi uma pratica sempre que constante, desde a escravidão, nas instituições, as fugas são consideradas infrações disciplinares e merecedoras de castigos.

Os que se transformam em infratores e pré-criminosos são aqueles que de uma forma desordenada tentaram subverter a ordem da institucionalização, a fuga é a maior forma de agressividade e rebeldia.

As primeiras rebeliões no sistema Febem começam no ano de 1977 depois deste período só se intensificaram, um dos motivos é a própria superlotação e os maus tratos infligidos aos jovens , pois durante 21 anos estiveram sob a Lei de Segurança Nacional, a Febem desde sua fundação já teve mais de 26 Rebeliões seguidas de cenas de barbárie.

As dificuldades são imensas para um ex-interno da febem se adaptar a um mundo que não o do crime, uma vez embrutecido dentro da febem, após ter acompanhado inúmeras rebeliões.

O potencial delinquencial existe em todas as pessoas, mas para aqueles que passam de 4 a 6 meses na Febem ou mesmo o que foram criados toda a vida dentro destas instituições a identidade é institucional ela se manifesta no jovem assim que adentra a Febem apreende a desenvolver uma série de mecanismos para não colocar-se em choque;

A violência no cotidiano entre os pares constitui-se em um fator regulador das relações intra institucionais, o uso de armas por lideres dos grupos, é um fator preponderante a disposição de assumir os risco.

Uma vez que ele está na Febem ele tem que se comportar como um Febem...exige a capacidade delinqüir dentro da instituição sem ser punido ou descoberto, burlar todas as normas de segurança.

O processo da formação da identidade criminosa possui um objetivo, ao controle dos corpos restringe não só a liberdade de ir e vir,a vida institucional, e social, a forma de andar, de se vestir de gesticular, a cabeça baixa,as mãos para traz. o sim senhor e não senhor , herança da colonização, das relações feitores e escravos permanece no interior das instituições através da herança do militarismo da época da ditadura.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos consagrou inúmeros valores que passaram a ser adotados por diversos diplomas e sistemas e ordenamentos jurídicos.

No caso dos adolescentes sob medidas sócio educativas é necessário igualmente que todos esses valores sejam conhecidos e vivenciados durante o seu tempo de permanência nestas unidades.

Sempre seguida de uma rotina entediante, e ociosa tudo o que poderá acontecer ocorre apenas no campo das idéias, a estrutura física determinam o espaço o lugar, a cama a mesa e o assento nas horas da refeição do interno,seus muros são altos, sem janelas apenas pequenas aberturas, beliches de cimento, grades de ferro, mesas e bancos de cimento, a televisão encaixada na parede, onde sentados no cimento do chão se,mexer são vigiados por 03 ou quatro monitores de pé.

São nestas condições que estão abrigados milhares de meninos na unidades da febem para infrator em São Paulo que estão cumprindo penas Sócio Educativas previstas pelo ECA, em um país democrático as luzes do século XXI. No século dos direitos humanos, podemos assistir pela televisão as rebeliões ao vivo e o confinamento destes jovens como na antiguidade dentro das masmorras.

Esses jovens que passam 24 horas do dia trancados nas suas celas, cuja única visão e o pátio de cimento. quando saem em turnos para tomar sol sentam se em pequenos grupos, procurando uma sombra ao sol do meio dia sob a vigilância dos monitores.

Sempre apavorados com o perigo de uma possível rebelião, pois serão os primeiros a servir como reféns,os monitores, são os únicos que tem contato o tempo todo com os jovens infratores, os técnicos psicólogos, assistentes sociais permanecem no setor administrativo.

Os jovens vivem entre grades de ferro e paredes de cimento a presença da Natureza é a visão que vem do alto o céu azul os jovens internos,ficam o tempo todo no ócio arquitetando fugas e rebeliões, mesmo que essas pareçam impossíveis.

Direitos e Humanos

Os artigos 227 da Constituição Federal e 4. do ECA estabeleceram a co-responsabilidade da família, comunidade e sociedade em geral para assegurar por meio da promoção e defesa dos direitos das crianças e adolescente.

Para cada um destes atores sociais existem atribuições distintas, porém o trabalho de responsabilização e conscientização devem ser contínuo e recíproco.

A necessidade da desconstrução da imagem criminosa do adolescente negro e pobre nestas instituições.

Cabe ao Estado maior responsável pela Imposição desta Identidade Criminosa, a promoção e garantia dos direitos humanos destes jovens, que vivem em situação de vulnerabilidade, cabendo a ele promover políticas públicas que coloque o adolescente a família como prioridade nas suas políticas sociais.

As famílias negras e pobres merecem políticas publicas que visem estruturar-se para que possam evitar o abandono, principalmente dos jovens que se encontram em medida sócio educativa, é necessário que o Estado cumpra com suas responsabilidades, fiscalizando e acompanhando e reivindicando a melhoria nas condições do tratamento e prioridade para este publico específico inclusive no que se refere ao orçamento.

A responsabilidade do Estado frente aos tratados e convenções que o Brasil é signatário ainda implica em fortalecer as redes sociais de apoio para aqueles que se encontram em desvantagem social, conjugar esforços para garantir o comprometimento as sociedade, através da conscientização da população dos efeitos nefastos do racismo e do preconceito contra este jovens, uma vez que como pessoas em situação peculiar de desenvolvimento são sujeitos de direitos e responsabilidades.

As profundas desigualdades que se encontra a população negra brasileira produz em relação a adolescência negra um quadro perverso de preferência a responsabilização.

Assim todos os direitos garantidos pelo ECA ou seja direto a vida a saúde, a liberdade ao respeito e a dignidade e o direito a convivência familiar e comunitária a educação a cultura ao esporte e lazer a profissionalização e a proteção ao trabalho devem estar contemplados na elaboração de políticas publicas. A Integridade física e mental o Estado é o responsável, a Constituição Federal , ECA, Convenção Sobre os Direitos da Criança, Regras Mínimas Administração da Justiça Juvenil, Regras de Beijing, Declaração e Plano de Ação da Conferencia de Viena, Declaração e Plano de Ação de Durban.

Garantem a todo ser humano a condição de cidadão e humano no sentido mais amplo da palavra.

Fontes Bibliográficas
Mendigos Moleques e Vadios- Walter Fraga Filho
Ilusões da Liberdade- Marisa Correa
Filhos do Governo – Roberto da Silva
ECA- Estatuto da Criança e do Adolescente
Ordem e Castigo no Brasil
A Criança e a Febem

Deise Benedito é Coordenadora de Articulação Política e Direitos Humanos da ONG Fala Preta! Organização de Mulheres Negras; Conselheira da SEPPIR, do Movimento Nacional de Direitos Humanos e da Comissão de Direitos Humanos do Município de SP; e Secretaria Executiva do Fórum Nacional de Mulheres Negras.

in: http://www.novae.inf.br/pensadores/deserdados_destino.htm