Reflexões de Deise Benedito

Deise Benedito é Presidente da Fala Preta Organização de Mulheres Negras, Membro do CNPIR - Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, Membro do GT Defensoria Pública do Estado de São Paulo e Observatório da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e Fórum Nacional de Mulheres Negras.

sábado, dezembro 02, 2006

Pró-Cotas - Aliança Secular

Afrodescendentes e Povos Indígenas
Deise Benedito*

Em 1500, em Porto Seguro, mais precisamente na região de Cabrália, após a invasão portuguesa, teve início o processo mais sangrento da história da humanidade, através do genocídio dos povos indígenas, os legítimos donos dessa “terra brazilis”. A escravização dos povos indígenas e o etnocídio promovido pelos europeus nas terras brasileiras reduziram a população original, devido aos embates sangrentos que foram dirigidos a esses povos que, donos da terra, puderam reagir e não se submeteram à escravidão, durante a exploração do pau-brasil que perdurou até 1530.

O processo de adoção de cotas, no Brasil, teve início com as “capitanias hereditárias”, entre 1530 e 1536 – dezoito ao todo – e com as sesmarias, que estabeleciam sub-reinados a partir da posse da terra.

Sabemos que a escravidão no Brasil e nas Américas promoveu, de forma brutal, o despovoamento do continente africano. Milhões de africanos foram desterritorializados, retirados de seu continente numa travessia atlântica de crueldade sem par. Homens, mulheres e crianças foram os protagonistas do espetáculo mais sangrento daquilo que chamam de “o desenvolvimento do novo continente”.

O sistema escravagista, perpetuando o uso abusivo da força, provocou inúmeras fugas de africanos escravizados para as matas, de onde foram resgatados e recepcionados pelos/as bravos/as guerreiros/as indígenas que, conforme me referi, não se subordinaram às investidas de desbravamento e à ocupação de suas terras. O povo da terra sabia muito bem o que estava acontecendo com os africanos fugidos, pois, haviam vivido seguidos e violentos embates que resultaram em verdadeira carnificina de diversas etnias indígenas.

Africanos, homens e mulheres escravizados, muitos dentre eles destituídos da nobreza que desfrutavam em terras do continente africano; guerreiros, agricultores, ferreiros, no processo da reconstrução de suas vidas além mar, constituíram um novo padrão civilizatório africano. Protegidos pelos espíritos das matas, dos companheiros de infortúnio, mesmo não dominando a mesma língua, estabeleceram um pacto em favor da sobrevivência, pela luta e resistência contra a opressão do colonizador cruel e desumano.

Instalam-se no Brasil novas fortificações, verdadeiros centros de resistência. Africanos, indígenas, brancos, todos explorados pelo sistema colonial português, unem-se para resistir às investidas de exploração e escravização da pessoa humana. Proliferam em várias capitanias os mocambos ou quilombos. Surge, nas Alagoas, o primeiro e mais complexo campo de resistência, o Quilombo dos Macacos, sede do Quilombo dos Palmares, estrategicamente posicionado. Ali foram estabelecidas novas regras de convivência, novas regras de conduta que podemos constatar como a primeira iniciativa de um movimento social no Brasil.

Alicerçados com o conhecimento da agricultura, da agropecuária, da metalurgia que traziam do continente africano; aplicando novas formas de escoamento da produção, Palmares torna-se o primeiro Estado Afro-Indígena das Américas. Os povos indígenas absorveram a nova forma de governo e foi estabelecido, em parceria, formas de organização contra as invasões.

Durante o período da escravidão no Brasil, não se tem notícias de conflitos entre negros e indígenas, como nos informa o historiador Flávio Gomes, em “Raça como Retórica”, organizado pela Sra. Ivonne Maggie, no capítulo referente à escravidão no Amazonas e Grão-Pará: muitos dos africanos durante a fuga morriam pela malária e outros conseguiam se salvar e passaram a viver em aldeias indígenas estabelecendo assim novas relações de cordialidade.

A oportunidade de os africanos se organizarem, no quilombo, buscando manter as mesmas formas de vida, como as que tinham nas sociedades no continente africano, foi possível graças à acolhida dos povos indígenas. Naquele novo lugar os africanos se dedicaram a reconstruir suas vidas, através da cultura, da fé e da resistência.

E qual a situação desses povos irmãos, hoje? Hoje, a população indígena está estimada em pouco mais de 300 mil pessoas. Dizimados, reagindo como podiam à invasão de suas terras; expulsos de seus territórios, degradados pela ausência de políticas públicas, pela falta da demarcação de território; sofrem a invisibilidade, a discriminação, o etnocídio, enquanto, sob a falácia da valorização cultural, relegam suas culturas a “folclore”.

A abolição da escravidão indígena, em 1690, e a decantada abolição da escravatura no Brasil, em 1888, nada garantiram a cada um desses seguimentos populacionais secularmente explorados, aos quais foi deixado absolutamente nada.

Mas o Brasil soube receber povos de além mar! Para o processo incentivado da imigração italiana, polonesa e alemã, foram asseguradas oportunidades, regalias, para integrarem a sociedade brasileira. Foram-lhes oferecidas condições dignas, concedidos lotes de terras para produção e sobrevivência; incentivos agrícolas e acesso à educação, com liberdade para criar suas escolas, falarem seus idiomas de origem e praticarem suas culturas.

Foi a adoção de “cotas” que beneficiou estes seguimentos que tiveram oportunidade de se desenvolver, num país que tinha nítidas intenção de estabelecer um processo de branqueamento. Esse processo de branqueamento não só promoveu a incorporação da mão-de-obra branca européia, deixando os africanos à própria sorte, como provocou a exclusão dos negros e dos povos indígenas dos bancos escolares.

Durante o período pós-abolição, no Brasil, à elite, que conseqüentemente é branca, sempre foi assegurado tratamento preferencial e favorável!

Nesse momento, estamos diante de um grande desafio, no país: a adoção de cotas para negros e indígenas e a adoção de políticas contra as desigualdades e pela reparação histórica para afrodescendentes e indígenas, conforme prevê a Declaração e o Plano de Ação de Durban.

As ações do movimento negro, no sentido de que sejam implementadas as cotas nas universidades públicas e as mobilizações nacionais devem inserir nossos irmãos indígenas.

O movimento negro brasileiro tem como premissa básica a igualdade e deve considerar o resgate da aliança secular afro-indígena. Aliança que vem sendo evidenciada, por exemplo, no evento da Eco 92 (RJ), da Marcha Zumbi-1995 (DF); em 2000, na Marcha Brasil Outros 500, que ocorreu em Cabrália, Porto Seguro (BA); aliança durante as conferências preparatórias para a Conferência de Durban; tal como na Conferência de Santiago; na Marcha pelas Reparações em Durban; no Tribunal Afro-Indígena pelas Reparações, promovido pelo Comitê Afro do Brasil, no Fórum Social de 2002, em Porto Alegre (RS); a Aliança Afro-Indígena, na Conferência Nacional de Políticas para Mulheres.

Vivemos um momento ímpar na sociedade brasileira. Todos os holofotes e canhões racistas estão voltados para nós, como no Quilombo dos Palmares. Assim como nossos ancestrais foram acolhidos e do mesmo modo como foram preservadas as populações quilombolas, é fundamental darmos continuidade à nossa aliança com os irmãos indígenas. Não podemos olhar apenas para nós. Somos diferentes, sim, mas padecemos do mesmo mal da discriminação e do preconceito. Sempre lutamos contra o estigma do preconceito, reivindicando igualdade de oportunidades para todos e para todas. Nossa luta tem caráter nacional e já ganhou reconhecimento internacional. Nesse momento, temos a oportunidade de mostrar à sociedade brasileira que juntos, negros e indígenas, somos mais fortes, porque assim sempre fomos, reagindo à opressão, desde o primeiro momento em que nos encontramos nessas terras do Brasil.

É hora de, mais uma vez, agregarmos as lideranças indígenas num processo de dignidade e resgate de cidadania, de direitos. A vida continua e a história desse país precisa ser contada por aqueles que, verdadeiramente, reconhecem esse solo como a sua terra, o seu fundamento, porque as terras férteis do Brasil foram regadas, de norte a sul, com sangue índio e sangue negro.

Deise Benedito
Presidente da Fala Preta Organização de Mulheres Negras
Fórum Nacional de Mulheres Negras